O título de “Trois Couleurs: Bleu” no Brasil pode ser enganador. “A Liberdade é Azul” faz alusão direta a um dos três valores centrais estabelecidos durante a Revolução Francesa e, de certa forma, sugere que a obra se trata disso. Quem acreditar nisso não estará totalmente enganado, pois, sob a ótica distorcida do luto, a liberdade dá as caras de forma que não tem absolutamente nada a ver com estar livre de amarras, fugir de uma prisão ou algo do tipo. Assim como tudo na vida da protagonista, a liberdade ganha um aspecto deformado e dificilmente reconhecível se pego fora de contexto, está presente como um conceito intimamente aplicado à história pessoal do indivíduo.
Patrice de Courcy é um compositor famoso e amplamente reconhecido como tal, sendo admirado e homenageado por especialistas e amantes da área. Ele tem esposa e filha compartilhando seu amor pela música e o apoiando, acima de tudo. Mas isso muda quando ele se envolve em um acidente de carro que tira a sua vida e da filha. Julie (Juliette Binoche), agora viúva, encontra-se sozinha no mundo pela primeira vez em muito tempo. Resta uma casa enorme, um legado que as pessoas fazem questão de relembrar, uma fortuna e a perspectiva de uma vida radicalmente abalada pela perda.
Depois de ver vários filmes supostamente adeptos do tal cinema de fluxo em festivais, normalmente produções independentes, é interessante ver o que parece ser o ponto de partida para vários deles. Posso estar errado, mas “Trois Couleurs: Bleu” e seu argumento relativamente amplo se parece muito com filmes que tentam trabalhar um tema geral por meio de uma trama não estruturada de forma primariamente causal. Ou seja, uma história que não se apóia tanto na justaposição de eventos para transmitir seus temas, idéias e mensagens. O título já indica uma tendência de abordar um conceito ao invés de uma peculiar seqüência de eventos de resultados inesperados. Numa ilustração esdrúxula, basta comparar os títulos “A Liberdade é Azul” e “O Resgate do Soldado Ryan”: um deles indica uma idéia, o outro um evento particular.
Superficialmente falando, os visuais encantadores podem ser outro sinal da herança passada para frente, considerando quantas obras vazias colocam suas fichas na beleza das imagens e esquecem do conteúdo. A competência típica destes mal se aproxima da fotografia impressionista e ridiculamente bela daqui, talvez uma das mais marcantes de todos os tempos. De alguma forma, se isto for possível, impressionismo é aliado ao naturalismo. A fotografia é claramente adulterada a fim de injetar cor na iluminação e, conseqüentemente, construir uma atmosfera consoante com as emoções da cena. Mesmo assim, tudo soa tão orgânico que mal pode ser considerado como uma manipulação artificial, como se os tons azuis inundando a tela fossem parte da iluminação natural do lugar. A diferença de qualidade entre esta obra de Krzysztof Kieślowski e a maioria destes supostos sucessores espirituais é o maior indicativo de divergência, mesmo com os mesmos princípios em jogo.
No lugar de uma corrente de eventos tradicional, “Trois Couleurs: Bleu” trabalha com um pontual acontecimento no início e com a grande conseqüência disso em todo o resto do tempo. Estrutura tradicional não se encontra aqui numa primeira vista, mas que não haja engano: a falta do familiar não significa falta de conteúdo ou de progressão. Nos primeiros momentos, uma batida de carro tira a vida do marido e da filha de Julie sem que se saiba quem estes dois são. É irrelevante em um primeiro momento. Tudo que importa inicialmente é a forma como a mulher lida com a situação. Dessa forma, é estabelecida a espinha dorsal da obra, a linha que será seguida até os momentos finais como a trama primária e a fonte de todas as outras. Só então começa a surgir o resto das informações, as quais servem de complemento para o conflito central entre a protagonista e ela mesma.
Conciso em seus 98 minutos, “Trois Couleurs: Bleu” apresenta só o conteúdo que agrega significado para aquilo que a personagem principal enfrenta. O pouco que se sabe sobre sua filha se justifica com o fato da importância de um filho ser reconhecida unanimemente. É um exemplo simples, mas importante, de qualquer forma, por representar a economia narrativa da obra. Em vez de gastar tempo com a melancolia melodramática de uma mãe sentindo saudades explicitamente, a obra aposta na capacidade da audiência de perceber como um objeto se torna um símbolo concreto para os sentimentos de Julie. Em nenhum momento ela verbaliza o que sente porque não é necessário. Cenas de contemplação desolada não entediam o espectador como entediariam em um filme de menor competência. Em “Trois Couleurs: Bleu”, economia não é falta de conteúdo. O estabelecimento prévio de um tom em conjunto com a significação de um objeto como símbolo e a atuação de Juliette Binoche evitam que estas cenas tipicamente descritas como paradas sejam entediantes, vazias ou pior, presunçosas.
Mas não há como dizer que o grande acerto de “Trois Couleurs: Bleu” é outro além de se apoiar na interpretação de Juliette Binoche como porto seguro. Para além da narrativa carregada de significado, é sua performance que dá vida às intenções da história de representar o funcionamento incomum de uma pessoa enfrentando um processo de luto. É agonizante ver algué, passar pelo que ela passa, enxergar a falta de racionalidade em muitos de seus atos, que, para ela, são totalmente lógicos. Está nos olhos sem vida a ferrenha determinação alimentada pela dor, a convicção paradoxal de que se está fazendo o certo ao mesmo tempo que se sabe que nada muda realmente. Não há melhor definição da falta de propósito que se sente quando se perde algo importante.
Novamente, um filme pobre esqueceria do sentimento de perda como o conector entre diversas cenas sem ligação cronológica direta. Já em “Trois Couleurs: Bleu” é possível ver a suposta aleatoriedade comportamental completamente justificada por um evento bem definido no começo do filme e duramente representada por uma atriz que estampa o sentimento em sua expressão. Ou melhor, em sua ausência de expressão. Sem tal atuação forte, a obra sem dúvida seria um fracasso miseravelmente agradável para os olhos e ouvidos.