Assim como aconteceu com diversas celebridades, que morreram e tiveram um impulso de popularidade já na sequência, Steve Jobs faleceu e abalou o mundo do entretenimento e da mídia com matérias sobre seu legado e sua genialidade, biografias e livros sobre sua vida e, previsivelmente, filmes biográficos. “Jobs” foi um dos mais divulgados, contando com a semelhança física entre Ashton Kutcher e Steve Jobs como um dos grandes atrativos. E enfim, a recepção não foi das melhores. Entre tantas outras produções menores, “Steve Jobs” se destacou pelos grandes nomes envolvidos: Danny Boyle dirigindo Michael Fassbender, Kate Winslet, Seth Rogen e outros em uma roteiro de Aaron Sorkin; uma soma de estrelas de resultado impressionante.
Após grandes vendas do Apple II, Steve Jobs (Michael Fassbender) está nos momentos finais antes de apresentar a nova máquina da Apple: o Macintosh. Na plateia, um público sedento para saber todos os detalhes por trás de um aparelho que promete revolucionar o conceito de computadores pessoais. Nos bastidores, Jobs tem de se preocupar com duas centenas de detalhes técnicos, funcionários buscando orientação, uma ex-esposa escolhendo o pior momento para discutir a relação e expectativas com o peso do mundo. Ao mesmo tempo, ele tem que garantir que seu produto seja bem apresentado e, ainda mais complicado, esperar que ele venda bastante. Os obstáculos sempre pioram quando possível e até se apresentam ao mesmo tempo. Essa é a história de um homem que marcou sua geração, mas não sem enfrentar uma coleção formidável de dificuldades antes.
Verdade seja dita: é difícil enxergar Steve Jobs no rosto de Michael Fassbender. Perucas e cortes de cabelo enganam um pouco sem maquiar realmente os traços fortes do rosto do ator. Por um lado, pode parecer um obstáculo para o espectador que busca fidedignidade visual nesta obra. Por outro, isso coloca um pouco mais de pressão sobre o ator para que sua interpretação seja forte a ponto de fazer a audiência esquecer das disparidades. Se James Dean se passou por adolescente em “Rebel Without a Cause“, por que não Fassbender como Jobs? Este é um caso em que, felizmente, este fenômeno acontece e desvia o foco de atenção para o que realmente importa: mostrar um indivíduo para além da aparência física e da objetividade dos fatos; alcançar o núcleo de crenças, comportamentos e sentimentos que comunicam realmente quem é a pessoa em questão. Tudo isso é mais do que vários filmes biográficos conseguem entregar e são elementos que, sinceramente, não esperava encontrar aqui. De todos os filmes que vi em 2015, deixei “Steve Jobs” passar por ele parecer o clichê do clichê dos filmes da temporada de Oscar.
Mas não. O roteiro, embora não esteja sozinho na tarefa de exaltar o filme do resto, não perde tempo e já começa a contar sua história fazendo o que faz de melhor: criar conflito. Tal palavra é amplamente utilizada em materiais sobre escrita de roteiro, os quais apontam que no cerne de todo bom enredo existe conflito, algo que impeça o personagem de conseguir o que ele quer de alguma forma. O conceito pode assumir várias formas, desde algo interno até obstáculos concretos ou pessoas, mas neste caso se apresenta da forma mais óbvia de todas, leva a palavra ao seu sentido literal. É seguro dizer que durante o filme inteiro os personagens estão brigando, discutindo, gritando, quebrando a cabeça para resolver um problema ou tomar uma decisão. Ao que tudo indica, este pedaço da vida de Steve Jobs foi feito de sangue, suor e estresse, os ingredientes dos fracassos e também dos sucessos. Todos os momentos apresentados trazem algum tipo de problema que sempre chega na pior hora possível, um elemento a mais na pilha de preocupações de um homem que vive para analisá-las, organizá-las e convertê-las em algo produtivo.
A tarefa do roteiro, então, é organizar todos estas brigas constantes de modo que não pareça que o filme tem apenas uma carta na manga. No final das contas, a mensagem de que a vida de Steve Jobs é conflituosa é simples de transmitir, bastando apresentar uma briga atrás da outra até que ela fique clara. No entanto, existem formas e formas de fazer isso. Bater sempre na mesma tecla com a mesma intensidade torna a experiência enfadonha e repetitiva, que expõe seu conteúdo sempre da mesma forma e carece da variedade tão valiosa para a forma de um filme. Vale dizer que não se encontra essa diversidade no jeito como os eventos se desenrolam, pois isso acontece principalmente por meio do diálogo. O que se faz para sobreviver a este campo minado é uma cuidadosa escolha de palavras que desenvolve o conflito de forma não linear, intermitente e, ao mesmo tempo, completamente lógica. Há vários assuntos na mesa, todos sendo potenciais gatilhos para um novo atrito. Começar com um, alternar para outro e outro sem esquecer do primeiro, voltar a este e resolver o resto ao longo do caminho é um jeito de descrever como as coisas acontecem. De qualquer forma, nunca parece que se perde tempo em algo ou que um novo tema rouba tempo do outro porque no fim tudo trabalha junto para intensificar a atmosfera. Quando Jobs volta para a conversa inicial depois de ter outros problemas martelados em seu crânio, ele já não é mais o mesmo, retomando o assunto de forma notavelmente diferente e, dessa forma, garantindo que este retorno vai ter pouco do que se viu antes.
Demonstrar essa mudança, é claro, depende inteiramente da eficiência do ator em seu papel. É neste ponto que Michael Fassbender despacha quaisquer preocupações com sua aparência e coloca no holofote a personalidade que ele toma como sua e desenvolve na sequência. Especialmente para quem não tinha conhecimento prévio sobre a personalidade de Jobs, esta é uma experiência potente por expandir o mito utilizando termos humanos, como uma personalidade calculista e acirradamente focada em resultados. Conhece-se um lado reconhecível por meros mortais, que possivelmente poderiam ter se assustado previaente com a proposta de tentar compreender um dito gênio. Melhor ainda, de forma competente. É sempre um deleite vr o personagem descontente, irritado, nunca descontrolado e sempre arranjando um atalho argumentativo para não se desviar muito de seu caminho e perder o tempo que ele não tem. Como se não bastasse a carga de problemas que se empilham, Steve Jobs ainda tem de correr contra o tempo a fim de amarrar as pontas soltas e cumprir suas obrigações. O peso destes elementos se faz sentido na interpretação do ator e, eventualmente, faz toda a diferença na hora de identificar os efeitos resultantes de lidar com um ex colega de trabalho quando a assistente pessoal vem para insistir que uma questão seja revisada. Ou seja, se Jobs volta diferente para uma conversa que havia começado em outro momento, é perfeitamente possível enxergar quais foram as influências assim como as mudanças propriamente ditas.
Sendo justo, talvez seja possível criticar “Steve Jobs” pela mudança de alguns fatos criadas para encaixar no roteiro planejado por Aaron Sorkin, no caso do espectador se incomodar com tais mudanças e considerar que elas atrapalham a experiência de alguma forma. Exemplo disso é o retrato do próprio Jobs como alguém mais exigente e rude do que na vida real, como reportado por alguns colegas de trabalho. No entanto, além da contradição entre opiniões sobre esta fidedignidade, há também a questão de como essa fidelidade aos fatos funciona num contexto cinematográfico. Por mais que algumas palavras nunca tenham sido ditas, que algumas atitudes não tenham sido cometidas e que exageros acontecem aqui e ali na adaptação, existe coerência na narrativa. A forma pode ter sido diferente, ao passo que o conteúdo, o comentário sobre a natureza do personagem, se conserva. É o bastante para mim e uma conquista inesperada dentro de moldes conhecidos, considerando como não se demonstra medo em falar verdades duras.