Quem não odeia burocracia? Fazer uma compra pelo internet e esperar meses porque o correio tem uma centena de departamentos ávidos para tributar a encomenda com impostos até então desconhecidos. Ou entrar em duas dezenas de sites diferentes em busca da relação de documentos imprescindíveis para a emissão de um passaporte. Toda essa dor de cabeça para viajar e descansar um pouco, esquecer da burocracia já vivida excessivamente no dia-a-dia. De certa forma, é irônico. Justamente a forma de extravasar o estresse causa ainda mais estresse. Antes de chegar na praia de água cristalina há uma sequência de agentes alfandegários e horas de aeroporto. “Brazil” tira sarro disso tudo de uma forma comicamente muito mais dramática e intensa que este parágrafo de devaneios sobre o assunto. A experiência dirigida por Terry Gilliam é uma metáfora gigante, viva e carismática da dor de cabeça de uma vida complicada desnecessariamente.
Sam Lowry (Jonathan Pryce) tem uma vida incrivelmente inerte, considerando o caos que o rodeia. Ele está no mesmo emprego há muito tempo e não liga pra isso nem para o fato de exercer muito mais funções do que deveria. Sua mãe tenta arranjar-lhe uma promoção e até uma namorada por meio de suas conexões, mas ele não quer saber de nada disso. Sam só muda de idéia quando, tentando corrigir um erro administrativo, ele se depara com uma mulher encantadora e curiosamente próxima à uma que habita seus sonhos. Finalmente fazendo algo por vontade própria, ele descobre que a individualidade não é bem aceita num mundo dominado pela burocracia.
Em alguns momentos, a arte proporciona pensamentos do tipo: “Nossa, essa obra é muito criativa”. Objetivamente, é uma afirmação rasa e até redundante, pois todo trabalho artístico envolve certa quantidade de criatividade; são frutos de conteúdo psíquico convertido em uma criação, seja ela de bom gosto ou não. Vendo por outro sentido, a frase pode se referir a obras especialmente marcantes em sua abordagem de um tema. “Star Wars“, por exemplo, deve ter causado uma impressão parecida em 1977 quando ninguém esperava ver um filme ser tão ousado na criação de um universo de sabres de luz, força, stormtroopers e um império galáctico. No caso de “Brazil”, ele se distingue pela representação complexa de um conceito simples caracterizado por complicações. Em outras palavras, o longa usa variadas formas para ilustrar o grande pé no saco que é viver sob burocracia, um fenômeno aparentemente criado para atrapalhar a vida dos outros.
Os burocratas dizem que assinar duas dezenas de formulários a serem encaminhados a três departamentos diferentes é uma forma de proteger o cidadão. Supostamente, a organização traz prosperidade. Todavia, basta um relance para ver que a realidade não reflete este pressuposto de forma alguma. Um dos ambientes de trabalho de “Brazil” chega a forçar a vista com tantos detalhes e pessoas aglomerados em um espaço tão pequeno. Como é possível haver organização com tantas máquinas enfileiradas, gente recolhendo papéis de uma mesa enquanto cruzam o caminho de outras? Pois bem, não é possível. Essa dinâmica desordenada dura apenas até a hora em que o chefe fecha a porta e volta para seu escritório. Imediatamente, todos os funcionários param o que estavam fazendo para assistir ao filme que está passando na TV. Ao mesmo tempo, vale dizer. Existe ordem para procrastinar, mas nada do tipo na hora de trabalhar.
É uma mensagem clara o bastante, uma forma exagerada de mostrar que as coisas realmente não funcionam. Talvez até um tipo de publicidade sarcástica: “Burocracia, o sistema campeão em fracassos do mercado!”. Numa completa contradição entre teoria e prática, o universo construído em “Brazil” faz questão de reforçar sua mensagem sempre que possível, dando uma nova cara à mesma piada sem nunca deixar transparecer que ainda se está falando da mesma coisa. Inicialmente, a crítica recai sobre a empresa de funcionários que se organizam para ver televisão; depois chega a vez do protagonista se atrasar para o trabalho porque seu despertador não tocou. Essa última parece uma cena comum e seria exatamente isso se o problema não fosse com o sistema elétrico, ou seja, uma grande dor de cabeça por conta da casa inteira depender desse sistema. O despertador não toca, as venezianas não abrem, a máquina de fazer torradas queima os pães, a cafeteira faz uma bagunça e assim por diante. A história comunica que as mais diversas esferas do cotidiano dão errado porque o sistema incompetente cria coisas ruins e não fornece manutenção adequada.
Tendo um tema consolidado como norteador, há vários motivos para se impressionar com o jeito como “Brazil” o coloca em prática. Em primeiro lugar, porque a produção é de uma riqueza equivalente a marcos do cinema como “Metropolis“. Simplesmente dizer que burocracia é um atraso de vida não basta; é necessário mostrar em quantos níveis este problema afeta o cidadão. Sendo assim, as imagens trazem sempre algo para impressionar os olhos assim como a história agrada o cérebro. Cada novo ambiente apresentado é um show de horrores misturando o escracho da comédia britânica com referências ao passado do cinema. Diferentes ângulos de um mesmo corredor mostram o porquê da reciclagem de set: eles realmente devem parecer idênticos. Soa estranho apenas até os funcionários trafegarem entre as portas como se estivessem numa perseguição de Scooby-Doo. A construção colossal de Fritz Lang encontra o cenário corporativo labiríntico de Billy Wilder e o humor de Monty Python — tendo espaço até mesmo para “O Encouraçado Potemkin”.
Mais incrível ainda é o modo como estas ferramentas visuais incrementam o desenvolvimento da crítica a um sistema dominado por normas desnecessárias. Depois de se surpreender com toda a imaginação envolvida na representação de uma empresa estatal incompetente, com propagandas enganosas e funcionários caricatos usando bonés de abas de 20 centímetros, é ainda melhor ver como tudo isso se encaixa no grande contexto da história. O roteiro cria um grande esquema para enviar o protagonista numa aventura de motivações simples, que, eventualmente, tem consequências gigantes. É uma montanha russa de valores invertidos. Enquanto uma história comum colocaria o sistema opressor como um obstáculo a ser superado pelo grande do herói, “Brazil” engrandece o plano de fundo e reduz a dimensão da jornada do protagonista.
O resultado dessa mistura de elementos grandes e pequenos, mas sempre chamativos, é uma experiência única que consegue subverter as regras a favor da narrativa. Poderia fazer todo o sentido usar o protagonista como uma figura emblemática e evidente dos temas da obra; ou usar seu trajeto para comunicar mais claramente um conceito complexo. Mas não, “Brazil” diminui seu protagonista ao dar-lhe uma motivação muito simples e complicar tudo que há em volta deste objetivo. O indivíduo não é nada diante de um sistema gigantesco que não funciona sob termos humanos. Destituindo o ser humano de sua personalidade, a individualidade se criminaliza porque não há burocracia zelosa a ponto de considerar a subjetividade humana plenamente. No fim das contas, o espectador sai da experiência odiando a burocracia com ainda mais afinco que antes.