Certos filmes possuem uma história de bastidores tão interessante quanto a principal. “Heart of Darkness: A Filmmaker’s Apocalypse” reconta a jornada caótica de Francis Ford Coppola na direção de “Apocalypse Now”. Todas as refilmagens, problemas com clima, atores e locais mostram que o filme existir e, ainda por cima, ser excelente é um feito impressionante. Mais recentemente, “The Disaster Artist” faz o caminho oposto e dá uma idéia melhor de como “The Room”, um dos piores filmes de todos os tempos, conseguiu agregar tanto mau gosto. “Loving Vincent” faz parte deste grupo de produções singulares que contaria uma boa história por trás das câmeras. Afinal de contas, é o primeiro filme inteiramente pintado da história do cinema.
Todo e qualquer quadro são pinturas de óleo sobre tela. Como diabos isso é possível, mesmo com toda a tecnologia disponível, é difícil de imaginar. Mas “Loving Vincent” cumpre sua proposta com maestria e quebra barreiras que, até então, poucos pensavam em quebrar. Primeiro, as cenas foram gravadas com atores reais realizando os movimentos dos personagens. Em seguida, os fotogramas foram utilizados como referências para 125 artistas, que emularam o estilo de pintura pós-impressionista de Van Gogh para criar um longa-metragem inteiramente animado e composto por pinturas. Além de referência estilística, diversos quadros serviram de inspiração para a trama, a qual empresta personagens e cenários para tomar forma. Não tenho dúvidas de que é uma das melhores homenagens possíveis para um dos maiores artistas do mundo, um trabalho especialmente querido pelos fãs do trabalho de Vincent Van Gogh.
Depois de um ano da morte de Vincent Van Gogh (Robert Gulaczyk), uma carta dele para seu irmão chega às mãos do carteiro Joseph Roulin (Chris O’Dowd). Buscando respeitar os desejos do falecido amigo, ele envia Armand Roulin (Douglas Booth), seu filho, numa missão para entregar a carta ao destinatário. Mas Armand não tem nenhum tipo de carinho especial pelo pintor, quem ele considerava um tipo de louco, andarilho, estorvo. Relutante, ele aceita cumprir os pedidos de seu pai e viaja o país para entregar a carta, aos poucos conhecendo um pouco mais sobre a vida e morte do pintor.
Como pode-se esperar, a maior conquista de “Loving Vincent” é sia identidade visual. E, não, não é pelo esforço hercúleo envolvido, pela quantidade de artistas ou pela técnica inovadora utilizada. Filmes são difíceis de fazer. Ponto. Até um filme ruim envolve tempo, dinheiro, gente e esforço, mas nem por isso é respeitado ou melhor avaliado. Neste caso, o resultado final faz jus ao empenho investido e traz algumas das imagens mais icônicas que já tive o prazer de ver no cinema. Chega a ser estranho categorizá-lo como uma animação, pois imediatamente desenhos bidimensionais clássicos, em computação gráfica e em stop-motion vêm à mente. Não parece correto inserir uma obra feita de pinturas de óleo sobre tela imitando sublimemente o estilo marcante de Van Gogh. Animações tradicionais costumam prezar por consistência artística para não tirar o espectador da experiência, evitar diferenças bruscas no design dos elementos. “Loving Vincent” segue um caminho diferente sem perder credibilidade ou qualidade.
Numa mesma cena, um campo de trigo com corvos ao fundo é visto. Na sequência, os pássaros voam juntos em direção ao céu. Uma cena comum e sem nada demais num primeiro momento. Por outro lado, uma demonstração perfeita da identidade artística da obra. Levando ao pé da letra a afirmação sobre cada obra de arte ser única, as pinturas usadas na animação evidenciam as pequenas diferenças entre um quadro e outro, pinceladas que saíram alguns milímetros para o lado e dão vida a um projeto que pode ser falsamente acusado de usar estética de muleta. Como uma obra feita artesanalmente, existem pequenas imperfeições na imagem que tornam a experiência uma amálgama de singularidade. Não há nada artificial ou fabricado aqui.
Como quem não conhecia a história do artista, a história mostrou-se bem satisfatória. A idéia é investigar os fatos acerca do resto de vida de Van Gogh: as circunstâncias, o que ele fez nas últimas semanas e até hipóteses sobre as razões por trás de sua morte. Para mim, foi o bastante. Talvez não seja para quem se prende aos fatos reais, mas analisar “Loving Vincent” por este viés seria contra-produtivo, já que a base principal para a trama são as pinturas produzidas pelo pintor. A forma ideal de usar conhecimentos sobre a vida dele é tentar reconhecer a forma como os trabalhos são usados de referência para personagens e cenários, cujos elementos até então imóveis ganham vida por meio da animação.
Mas esta é uma idéia de resultados ambivalentes. Ela idéia rende um grande número de referências para aqueles que conhecem mais de perto o trabalho de Van Gogh e, ao mesmo tempo, molda a narrativa por obrigatoriamente envolver certos personagens e contextos. Claro, não necessariamente este era o único caminho a ser seguido, porém, ao meu ver, influenciou os roteiristas a criar uma narrativa engessada e pouco inspirada. Por explorar principalmente eventos passados, que antecederam os eventos da trama, “Loving Vincent” recorre repetidamente a flashbacks para revelar o que aconteceu com Vincent Van Gogh. Como alguém que senta para escutar outra pessoa contando uma história, o espectador observa Armand Roulin encontrando uma figura atrás da outra – todos pintados uma vez por Van Gogh – e descobrindo um pedaço do passado até finalmente chegar no quebra-cabeça completo. Descobrir os fatos aos poucos faz parte de uma progressão orgânica, mas depender da mesma forma de revelá-los toda vez é um jeito preguiçoso de contar uma história. Mesmo tendo as limitações das pinturas existentes, existem mais de 800 para construir uma narrativa e outras tantas possibilidades limitadas apenas pela criatividade do roteirista. Neste caso, o resultado deixa um pouco a desejar.
“Loving Vincent” não conta a mais profunda das histórias. A dependência de flashbacks para recriar o passado, visitar um personagem pintado por Van Gogh após o outro para descobrir o que cada um sabe sobre o artista, estraga um pouco a experiência por repetir a mesma técnica várias vezes. Por outro lado, não posso acusar o filme de ter uma ambição fraca. Ao menos tenho segurança de que dificilmente pensaria em criar uma animação feita inteiramente de pinturas de óleo sobre tela. Certamente pensaria em métodos mais tradicionais e menos complicados. Felizmente, existem artistas com idéias diferentes e capacidade para reproduzir suas visões, processo que eu gostaria muito de conhecer mais de perto através de um documentário ou making of.