Algumas pessoas que não param por nada quando colocam algo na cabeça. Existem as com determinação de ferro, tão focadas em chegar onde querem que enxergam as pessoas como obstáculos a serem atropelados ou degraus na escada do sucesso. Outras são menos intensas. Contudo, todos têm um pouco disso em suas personalidades em graus diferentes e, pelo menos em um momento da vida, vivem a ocasião que torna até os mais passivos em indivíduos obstinados a cumprir seus objetivos. A motivação? Pode ser algo grande ou, no caso de “Eyes Wide Shut”, um fato pequeno, muito mais imaginário que concreto. No fundo, não importa muito a razão. Quando a pessoa tem algo a provar, é difícil convencê-la a parar.
Esta é a base para os eventos de uma série de noites no mínimo incomuns na vida do Dr. Bill Harford (Tom Cruise). Tudo começa com um jantar de primeira classe como tantos outros que ele e sua esposa, Alice (Nicole Kidman), foram antes. Mas algo diferente neste último distancia os dois em certo momento. Ela encontra um charmoso húngaro para dançar; e ele, um par de jovens modelos entusiasmadas. Mas nada acontece, exceto por uma briga colossal quando os dois chegam em casa. Até aí, nada fora do comum. Bill só não esperava o que a noite guardava para ele quando ele ronda as ruas para esfriar a cabeça.
Um dos assuntos mais misteriosos e controversos da Psicologia é a infidelidade. A ciência diz que o cérebro processa sexo, amor e paixão em lugares diferentes, significando que não necessariamente existe amor na traição. Já as pessoas que traíram alguma vez na vida trazem os mais variados motivos. O problema é que não há uma resposta satisfatória para todos. Mesmo uma centena de estudos provando que um deslize é um deslize não é o bastante para a pessoa que foi traída. Com sentimento, compromisso, atração física e ocasiões perigosas em jogo, a traição tem material de sobra para render discussões intermináveis. Bill e Alice estão numa fase morna do relacionamento, sem empolgação para fazer o que poderia ser considerado empolgante por outras pessoas. Quanto trocar as roupas diárias por smoking e vestido longo já não tem a mesma graça, surge a curiosidade pelo novo e pelo diferente. E então, claro, as coisas dão errado porque as duas partes compreendem este novo interesse diferentemente. “Eyes Wide Shut” parte desta polêmica inerente do assunto para lançar o protagonista numa jornada em busca do desconhecido, alimentado pelo ímpeto de afirmar algo e se auto afirmar no processo.
O mais interessante é que nada realmente acontece para causar isso. Este é um daqueles suspenses nascidos de um evento pequeno e praticamente sem importância. Considerando a situação como um todo, não dá para dizer que o estopim desses eventos é proporcional às suas consequências. Uma coisa é a polícia perseguir um criminoso depois deste estuprar e matar uma moça. Existe uma relação lógica entre uma coisa e outra. “Eyes Wide Shut” segue a tradição Hitchcockiana de tirar o homem comum de sua vida rotineira para colocá-lo numa situação extraordinária. E Stanley Kubrick, como um bom contador de histórias visuais, faz dos menores eventos algo interessante ao ilustrá-los tão significativamente. Mesmo o começo do filme, quando as extravagâncias ainda não começaram, é carregado com uma tensão sexual silenciosa. Os acontecimentos em si não têm nada demais, mas há algo por trás de interações rotineiras de casal que as torna mais do que uma troca verbal sem graça. Na parte mais visível, a direção cirúrgica da química entre Tom Cruise e Nicole Kidman ajuda a contruir esta maior profundidade. A outra surge mais subliminarmente.
Não diria que o contraste entre laranja e azul é algo exatamente inédito. Depois que vários pôsteres recentes prostituíram a combinação através da repetição e da ausência de sutileza, o casamento das duas cores tornou-se notável. No entanto, não quer dizer que elas não funcionem em boas mãos. A combinação das duas em quadro é uma das ferramentas utilizadas por Kubrick na construção do subtexto de “Eyes Wide Shut”, sendo equivalente à interação conflituosa do casal. Eles não se comunicam nos mesmos termos e não estão conscientes disso, mas demonstram sutilmente através das coisas que fazem praticamente sem pensar. A casa, teoricamente um ambiente inanimado, está viva com a atividade inconsciente de Alice e Bill, revelando que há algo errado ali. Num quarto iluminado por luzes quentes, a mulher se posiciona debaixo de uma janela fortemente azulada; em outro lugar calorosamente iluminado, ela novamente coloca-se no limite com outro cômodo dominado pela frieza. Eventualmente, os dois separam-se. Através da predominância de um tom sobre outro, a transição de um estado de banalidade para algo extraordinário é realizada majestosamente.
Mas essa é só a preparação para os atrativos verdadeiros da história. Quando finalmente chega a hora das complicações entrarem em jogo, o nível de competência na representação do enredo se mantém e até melhora, considerando que os eventos elevam-se a um patamar mais extravagante. Assim como uma relação sexual começa com a tensão invisível que domina os pensamentos e excita a pessoa, “Eyes Wide Shut” dá uma atenção especial às preliminares antes de finalmente se entregar aos prazeres de uma experiência dificilmente descritível com palavras. Prefiro não dar muitos detalhes sobre o que se sucede. Os encantos nascem com a surpresa dos caminhos tomados pela trama, misteriosos e bizarros em sua essência. Curiosamente, “Eyes Wide Shut” sofreu um pouco com a censura por conta de seu conteúdo sexual, mas não entendi bem o porquê. Quando assisti, cheguei a pensar que estava vendo a versão censurada porque não cheguei a me chocar ou a entender porque alguém o faria. Kubrick aborda temas sexuais, certamente, porém nunca de uma forma chocante como “Love“, um longa consideravelmente mais explícito em seu conteúdo.
Talvez o contexto tenha sido mais considerado que a execução em si, como se o tratamento do assunto fosse mal vista, embora a censura tenha recaído sobre esta última parte. A motivação do protagonista em buscar o sexo de formas absurdas é reflexo de uma vontade que nada tem a ver com a satisfação libidinal ou o gozo sexual. Ele tem algo em mente o atormentando, um pensamento obsessivo que o leva aos lugares inusitados onde o primeiro lado de uma representação antitética surge. Kubrick caracteriza seu conceito de sexo como algo cerimonial e cheio de formalidade, engrandecendo ainda mais o que no começo do filme era apenas um desejo latente. Todo o cuidado prévio na construção de uma atmosfera provocante passa a ser concretizado com a seriedade de um rito religioso assustadoramente impactante. Quando as cerimônias finalmente chegam ao fim, resta algo similar à satisfação incompleta de Freud. As cenas de sexo chegam a ser exageradas e teatrais, nunca buscando o realismo vulgar que costuma incomodar as audiências. Depois de tanta preparação e expectativa, o protagonista encontra algo bem diferente do que esperava.
No fim das contas, “Eyes Wide Shut” é uma grande metáfora para a vida. Muitas vezes, as coisas que movem o ser humano e dão a ele a determinação para mover montanhas com as próprias mãos são maiores que a recompensa de seus esforços. Bill Harford pensou e pensou nas coisas que faria, inflamado por ardor de sentimentos feridos. Depois de envolver-se nas reviravoltas de um enredo cheio de caminhos curiosos, ele é deixado com verdades essencialmente mundanas, as quais com certeza poderiam ser atingidas de forma mais simples sem a mesma graça. Explorar os cantos escuros da cultura urbana ao som de uma trilha sonora assombrosa — de um jeito que apenas composições clássicas conseguem — é uma proposta muito mais atraente.