Uma comédia de Martin Scorsese? É esquisito imaginar algo do gênero vindo do mesmo diretor que fez seu nome com vários filmes incríveis sobre gângsteres. Mas digo isso numa visão retrospectiva, pois “The King of Comedy” saiu antes mesmo de Scorsese lançar “Goodfellas“, longa que associou seu nome para sempre aos mafiosos. A história tem um quê de sátira e fala sobre as aspirações de um homem de entrar no show business, mas nem por isso está desconectada dos temas mais populares do diretor. Na forma mais clássica e eficiente de rir de si mesmo, o cineasta mostra-se consciente de suas próprias características e tira sarro delas com resultados impressionantes.
As noites da família americana tornam-se mais alegres com a presença de uma figura icônica: Jerry Langford (Jerry Lewis), apresentador de um programa de entrevista. Toda noite, o narrador introduz a orquestra, os convidados da noite, ele mesmo e Jerry com as mesmas palavras. Não faz diferença, o público ama e espera tudo isso. Rupert Pupkin (Robert De Niro) também é fissurado por essa magia, mas seu sonho é ser ele mesmo um Rei da Comédia. Entre ambições, insistências e expectativas frustradas, Pupkin fará de tudo, inclusive perseguir Jerry Langford, para conseguir o que quer. Só falta ele saber o que está fazendo.
Devo dizer que minhas expectativas quanto a “The King of Comedy” não foram exatamente correspondidas. Não porque o filme é pior do que esperado; pelo contrário, ele é até melhor. Eu achava que ele fosse mais como uma comédia, em vez de apenas cômico. Mas não é um problema, de forma alguma. Apenas um detalhe que vale a pena ter em mente na hora de assiste, justamente para evitar situações em que a quebra de expectativa possa levar à frustração. Para mim, funcionou perfeitamente porque a história não se apoia nas piadas para ter sucesso. Mesmo tirando todas as palhaçadas ocasionais e os absurdos propositais, o roteiro ainda tem um enredo que se garante por si. Resta uma boa história dissecando os bastidores da fama vistos sob dois pontos de vista: o de quem almeja a fama e o de quem já é famoso.
Recentemente, me peguei pensando neste exato assunto. Como será a vida de uma celebridade? A parte clichê todos já conhecem, com os vários tapetes vermelhos, viagens pelo mundo, festas de alto nível e aleatoriedades marcando presença nos sites de fofoca. É tão normal ver os artistas posando para as câmeras e abusando da exposição enquanto ela ainda existe que muitos estranham Terrence Malick preferir ficar longe da mídia e da atenção dos fãs, por exemplo. O que fica menos exposto é o efeito de tudo isso na vida da pessoa. Poucos conseguem imaginar-se indo num café e encontrando Al Pacino na mesa do lado. Para muitos fãs, seria extraordinário encontrar o astro, pedir autógrafos, fotos e todo o resto. Enquanto para o artista talvez fosse igualmente extraordinário poder sair para comer um pedaço de bolo sem ter que dar atenção para uma dezena de pessoas que reconhecem ele. “The King of Comedy” brinca com essa dualidade e até adiciona um fator complicante do protagonista tentar forçar estes encontros com seu ídolo de formas um tanto inusitadas, o que é sempre bom para o quesito comédia.
Pupkin não é do tipo que desiste fácil nem daqueles que entram na fila e esperam sua vez. Em sua cabeça, o melhor jeito de chegar no topo é indo direto até ele, sem tentar seguir o caminho da maioria das pessoas. Começar de baixo, trabalhando em clubes de comédia até formar uma reputação e se tornar alguém não é considerado. Ele só precisa de uma chance de mostrar seu talento para o mundo, pois já não é mais tão jovem nem acha que tem muito a melhorar. De tudo isso, absorvo um grande significado: como as pessoas superestimam a si mesmas. Basta mudar a função de comedianta para a de cineasta e os exemplos surgem aos montes. Enquanto poucos pensam em estudar e se dedicar a um dos vários ofícios do Cinema, a maioria se embriaga em seu próprio orgulho e espera o reconhecimento de seu talento. Preferem aguardar seu Oscar em vez de aperfeiçoar a técnica. E o que isto tem a ver com “The King of Comedy”? Diretamente, muito pouco. No entanto, isso indica um grande acerto do longa: instigar o pensamento de sua audiência.
Por um lado, é incômodo ver como Jerry Langford ignora pessoas que ficariam extasiadas por um segundo de sua atenção. Mais ainda quando ele claramente despacha Rupert Pupkin com uma promessa que nunca tinha intenção de cumprir. Tudo bem, ninguém tem a obrigação de fazer o que não quer, contanto que as intenções sejam esclarecidas. Ele não faz isso, prefere alimentar as expectativas de seu fã sonhador sem pensar nos resultados disso. O que acontece na sequência, de certa forma, é parcialmente culpa sua por não ter dito o que realmente pensava lá no início. Pupkin não está certo em pensar do jeito que pensa, procurando cortar caminho sem esforço, nem Langford por não tratá-lo com honestidade. “The King of Comedy” não perdoa ninguém. Todos são culpados de seu próprio jeito, exaltando como relações envolvendo ambição e fama costumam ser cheias de controvérsia. Dá para imaginar uma história mais rasa pintando o artista como uma figura sem sossego ou o sonhador como vítima do sistema predatório das celebridades. Felizmente, não é o que acontece aqui.
E o melhor de tudo é Martin Scorsese escolher o caminho da Comédia para representar essa situação complicada. Poderia muito bem ser um drama, mas acho que talvez não teria o mesmo impacto. Do jeito único como se apresenta, “The King of Comedy” não dá margem para imaginá-lo de outro jeito. Não quando o diretor aproveita a oportunidade para revisitar alguns de seus próprios temas e manias de um jeito engraçado, como o uso da violência e da agressividade. Poderia ser um filmes cheio de reações explosivas e violentas ao estilo Joe Pesci, mas o diretor prefere transformar um sequestro numa sátira orquestrada por um homem de óculos enormes e camisa florida completamente despreparado. Rupert Pupkin está determinado e convicto em sua busca, mas Robert De Niro não está tenso, ansioso ou aflito. Ele age como se seus atos fossem completamente normais. É bizarro ver como não há cinismo maquiado quando ele espera horas na recepção de Jerry Langford ou aparece de surpresa na vida do idolo. Diferente dos comum, Pupkin não tem segundas intenções, apenas um objetivo bem definido e uma completa falta de noção do que é apropriado ou não. Vê-lo diante de um Jerry Lewis completamente intolerante aos absurdos, como alguém rodeado por imbecis, cria uma equação curiosa e fascinante. É como se colocassem um personagem sério num filme de Comédia que ele já viu: ele sabe que é tudo bobagem e não tem muita paciência para lidar com as situações bizarra em que é posto.
Engraçado ou não, “The King of Comedy” definitivamente coloca sua audiência para pensar. Claro, a analogia que fiz anteriormente é apenas uma possibilidade entre muitas. Não precisa ser necessariamente um estudante de cinema, pois a figura de um arrogante ou iludido que busca atalhos para a glória aparece de todas as formas. E pior, às vezes acontece desta pessoa ter algum tipo de sucesso, justificado ou não. “The King of Comedy” traz alguém que escolheu a comédia televisiva como palco para sua demonstração de ambição alimentada por imediatismo e frequentemente resultando em vergonha alheia. Funciona neste contexto e em muitos outros, de uma forma ambivalente até. Sempre há um Rupert Pupkin na vida de alguém ou um esnobe que prefere ignorar, mentir e enganar em vez de dar uma resposta sincera, mesmo que as expectativas sejam prepósteras. Ninguém é totalmente inocente.