Quão influente uma obra deve ser para criar um termo inteiramente novo? Gaslight, a princípio, provém de um tipo de iluminação usado antigamente, quando a eletricidade ainda não era completamente usada nas cidades. Uma mistura específica de gás era acionada manualmente por uma válvula e acendida com uma faísca ou chama, resultando na iluminação do ambiente — mais ou menos como um fogão. Em 1938, Patrick Hamilton lançou uma peça de teatro chamada “Gas Light”, na qual parte da manipulação do marido para enlouquecer sua esposa envolvia as luzes da casa diminuindo de intensidade. Com o sucesso da peça e das adaptações cinematográficas em 1940 e 1944, surgiu o termo “gaslighting”: fazer alguém questionar sua memória, percepção e sanidade através de mentiras e manipulações. Respondendo a pergunta do começo, muito influente.
Curiosamente, “Gaslight” fez barulho no mesmo ano que “Double Indemnity” chamou a atenção do grande público e da Academia. Ambos foram indicados a 7 Oscars e pertencem ao mesmo gênero, porém o impacto de cada um foi significativamente diferente. Enquanto a obra de Billy Wilder solidificou uma série de convenções, arquétipos e entonações que influenciariam inúmeros outros trabalhos do período clássico do Noir; “Gaslight” causou uma impressão forte principalmente com a comunidade médica, que passou a usar o termo “gaslighting” oficialmente na descrição de comportamentos narcisistas e sociopatas, por exemplo. Além do mais, venceu dois Oscars contra nenhuma vitória do primeiro. Sobre o que até hoje é uma das maiores esnobadas da história do Oscar, já lamentei uma vez ou duas sobre a derrota da sublime Barbara Stanwyck. Isto é, porque ainda não tinha visto o espetáculo de Ingrid Bergman.
Em sua infância, Paula Alquist (Ingrid Bergman) testemunhou o assassinato de sua querida tia, famosa cantora de ópera que cuidou dela toda sua vida. O evento a traumatiza, levando-a a abandonar sua casa em Londres para ser pupila do mesmo professor de canto que treinou sua tia. Anos mais tarde, Paula mostra-se cada vez mais distraída de seus estudos até finalmente revelar estar apaixonada. Um romance de poucas semanas logo evolui num casamento e traz o casal de volta para a infame casa do assassinato. Então Gregory (Charles Boyer), o marido, deixa de ser o homem atencioso de antes quando chega no lugar. Ele tem algo a esconder e fará de tudo para manter o segredo, mesmo que isso signifique enlouquecer a própria esposa.
Logo em sua premissa, “Gaslight” não esconde que seu grande chamariz é a relação patológica entre marido e esposa. Mas talvez a intenção não tenha sido de se apoiar tanto nesta parte. A trama tem uma falha elementar de ser muito pouco sutil já no começo, o que mata parte do impacto de algumas revelações eventuais. Logo quando chegam na casa, Gregory começa a agir subitamente como um homem louco, exatamente como alguém que fez algo gravíssimo e tem medo de esconder. Assim, parte da motivação por trás de sua manipulação se vai cedo quando o espectador já sabe que existem más intenções no plano de fundo. Ao menos para mim, imagino que deixar o comportamento gratuito, de certa forma, criaria uma experiência mais provocante. O cinismo do marido seria mais efetivo porque ficaria no ar se a esposa está enlouquecendo de fato ou se ele está causando aquilo.
Parece uma falha grave e talvez até seja, mas ela não impede que “Gaslight” seja uma experiência incrível. Felizmente, as tais revelações pouco surpreendentes chegam num momento em que o resto das qualidades do filme já estão bem estabelecidas. A melhor delas é a interpretação incrível de Ingrid Bergman, uma que faz a Elsa de “Casablanca” parecer um papel brando e sem graça em comparação. O grande desafio de interpretar uma mulher numa relação abusiva é justamente demonstrar genuinamente seu sofrimento. Nada como o dramalhão típico de colocar a mão na testa e se jogar no chão — prática comum do Cinema Mudo — mas mostrar os efeitos corrosivos de mentiras e jogos de poder. Paula começa dando a resposta educada de alguém diplomático demais para criar intriga por motivos bobos, reflexo de uma educação que preza bons modos acima de tudo. Então acontece de novo. O manipulador se aproveita da cordialidade para encaixar uma acusação: “Você anda muito esquecida!”. E, novamente, a pessoa prefere ceder à afirmação, pois talvez esteja um pouco com a cabeça nas nuvens. Quando a vítima se dá conta, é tarde demais e já nem sabe direito se está realmente fazendo as coisas das quais é acusada.
Ingrid Bergman captura a essência de cada um desses estágios com a mesma naturalidade conforme são dispostos pelo roteiro. Valoriza-se a noção de que insanidade é construída como um processo em que pensamentos e crenças previamente tidos como normais são substituídos por padrões patológicos. Diferente de um sintoma pontual notado instantaneamente — e às vezes resolvidos da mesma forma — a base da existência psíquica da pessoa é derrubada e a deixa com quase nenhum suporte. Bergman insere-se neste ciclo decadente como alguém despreocupada com extrair fatalidade da situação de sua personagem. O drama encontra é inerente numa atuação fidedigna, como ver a atriz escorando-se numa parede apenas quando sua saúde mental justifica o ato. Numa das cenas mais incríveis de “Gaslight”, por exemplo, Paula engole todo o sofrimento que enfrentou até então para não deixar transparecer em público. Mas não seria este um sucesso paradoxal, já que uma repressão bem sucedida consegue esconder do mundo o que está por dentro? Seria se este fosse o caso dela conseguir enterrar tudo o que sente, mas a educação da família tradicional britânica tem suas limitações. Momentos pequenos, como quando Bergman dá uma piscada mais alongada e vira a cabeça lentamente, demonstram o esforço, não necessariamente o sucesso, de Paula em manter algo dormente dentro de si. Definitivamente fez por merecer seu Oscar.
Adicionalmente, Charles Boyer solidifica as atuações como a maior conquista de “Gaslight”. Para cada vez que Bergman atua impressionantemente bem como uma mulher sem forças para argumentar sobre sua própria mente, assunto que ela conhece mais do que qualquer outro, há uma demonstração formidável de Boyer como o causador do sofrimento. Admito que o holofote não é dele. Comparado à sua companheira, ele brilha menos. Mesmo assim, sua presença cumpre perfeitamente a função de contraponto imoral para a mulher pura. Isso torna tudo mais profundo e interessante, pois traz os efeitos dolorosos da tragédia junto do responsável numa pose inabalavelmente segura, sem deixar-se abalar pelo sofrimento alheio. Só poderia ser assim para ser eficiente. Quem deseja fazer algo do tipo deve, no mínimo, transbordar cinismo e convicção para fazer a outra pessoa comprar sua mentira e duvidar de si própria. Ter a capacidade de se colocar na posição de homem dos sonhos, conquistar a confiança e o amor do outro para depois tornar-se um enganador invulnerável é a tarefa que Boyer assume e cumpre perfeitamente bem.
Com este personagem imoral, “Gaslight” se aproxima mais de um Noir e deixa de ser um Drama, essencialmente. Assim como “Rebecca“, a presença de um homem problemático faz da vida de uma mulher desavisada um inferno, com o passado tumultuoso dele trazendo problemas para dentro de casa. Neste caso, serve também como uma metáfora perfeita para o sentimento de população no pós-guerra. Por fora, ninguém nota que há algo errado porque o marido sempre tem uma boa desculpa para a esposa não sair em público. A tranquilidade existe apenas no plano das aparências, enquanto dentro de casa a situação é consideravelmente menos bela. O sofrimento silenciado de Paula demonstra perfeitamente a falsa segurança vivida pela população na época. Por fim, as escolhas de ambiente e visuais finalizam a identidade do filme como um Noir. As sombras fortes projetando-se sobre móveis caros e decoração refinada reforçam a idéia dessa combinação ser o símbolo de uma sociedade decadente sem muito ao que se agarrar. A ilusão de que está tudo bem já não funciona mais; a angústia está presente demais para ser ignorada.
Comparado a outros Noir, ouço falar pouco de “Gaslight”. Curioso, considerando que é um filme excelente. Talvez as pessoas deixem para comentar sobre aqueles cuja popularidade se baseia em seu impacto ou influência. É o caso de “Double Indemnity“: mais marcante sem ficar muito na frente em termos de qualidade. Quem, por ventura, der uma chance para este longa dirigido por George Cukor e estrelado por um incrível elenco, incluindo os magníficos Charles Boyer e Ingrid Bergman, dificilmente sairá desapontados. Mesmo que a trama seja um pouco explícita demais na indicação da moralidade do personagem de Boyer, as interpretações roubam a cena e amenizam bastante tal deslize.