“Jackie” é o filme mais sem sal desse Oscar e acredito não estar sozinho nessa. Estar no grupo dos longas que não chamam a atenção não o torna ruim, só me faz ponderar sobre qual executivo conseguiu ver algum tipo de apelo na história da esposa de um presidente americano. Claro, digo isso pensando em termos de Hollywood, pois toda pessoa tem uma grande história para contar. Até as que se consideram os maiores fracassos tem algo para dizer, há algum sentimento genuíno por trás de toda tragédia. Assistir a este longe me surpreendeu por jogar na minha cara algo que eu já sabia. Não importa se foi John Fitzgerald Kennedy quem entrou para a História, sua esposa tem muito a dizer.
Depois do infame assassinato de seu marido, Jacqueline “Jackie” Kennedy (Natalie Portman) conta sua história a um repórter (Billy Crudup), apresentando em primeira mão detalhes de suas dificuldades depois do evento. Ela reconta tudo, desde a preparação para a fatídica passeata em Dallas até o que aconteceu durante o atentado e como ela lidou com a morte. Como uma das primeiras damas mais reconhecidas, era seu papel conservar o legado de seu marido de forma que a nação nunca esqueça. Já como ser humano, aceitar o peso de uma perda tão grande não é uma tarefa feita tão facilmente.
Escrevendo essa análise, me lembrei de um livro escrito por Cynthia Powell, a primeira mulher de John Lennon. Ela conta sua história de vida com John Lennon e revela muitos detalhes interessantes sobre a vida do Beatle, além de apresentar um ponto de vista único até então: o seu. No entanto, fica bem claro pelo próprio título do livro — apropriadamente chamado “John” — que ela se deixa eclipsar pela imagem de seu marido. “Jackie” é um filme que tinha tudo para fazer o mesmo. Nestes mais de 50 anos desde o assassinato de JFK, quem pensou na sua esposa princesinha, cujas maiores preocupações eram redecorar a Casa Branca e andar bem vestida? Não duvido que muitos venham assistir a este longa esperando saber mais sobre o presidente, sendo que é a vida da suposta esposa-troféu que ocupa o centro de tudo.
Também ão vou dizer que o famoso presidente não tem espaço, pois estaria mentindo. A história não é sobre isso, ela usa a tragédia como ponto de partida para todo o conflito interno da protagonista. Assim, ela fala o tempo todo sobre o incidente e demonstra como aquilo realmente foi uma catástrofe na vida de uma pessoa conhecida principalmente como a mulher do presidente. O que a morte dele faz dela? A viúva mais importante do país? Acima de tudo, “Jackie” explora como a primeira dama, um dia importante e no outro notícia de ontem, é humana, apesar de tudo. Um exemplo peculiar, diga-se de passagem.
Por um lado, ela é como qualquer outra pessoa que chora com a perda de alguém amado e se sente sem chão diante de um evento tão traumático. Em contrapartida, ela está tão alienada por seu estilo de vida orientado por aparências, protocolo e preocupações superficiais que seu processo de luto é um verdadeiro vendaval de comportamentos erráticos e contraditórios. Ora ela está enchendo um copo de vodka com gelo e escancarando as portas da sala de autópsia no impulso — como é de se esperar — ora ela está preocupada com os convidados para o funeral, qual roupa usar e quantas carruagens estarão na procissão. Esses comportamentos revelam que, apesar das aparências medíocres, há um ser pensante ali no meio, um traço de humanidade entre costumes cimentados pela vida de primeira dama. É uma dinâmica bizarra e pode parecer um atestado contra a tridimensionalidade da personagem. Para mim, é exatamente essa estranheza por trás do comportamento dela que o roteiro busca exacerbar. “Jackie” está constantemente saltando pela cronologia, indo da entrevista com o repórter aos momentos imediatamente após o assassinato e dali a uma popular gravação da Sra. Kennedy apresentado o interior da Casa Branca. Momentos de dor e sofrimento são intercalados com a trivialidade de uma mulher com discurso decorado sobre qual presidente comprou qual móvel; um reflexo da personalidade singular da protagonista, fragmentada diante da súbita ausência do homem que era sua base.
Certas interpretações trazem consigo um sentimento de autenticidade, algo mais forte que a boa atuação de um ator com domínio da técnica. Eu nunca fui muito ligado em quem foi Jackie Kennedy e parte do meu desinteresse por esta obra parte exatamente daí, mas ao ver Natalie Portman interpretá-la eu senti que estava vendo uma atriz diferente de qualquer outrao papel que ela já tenha feito. O rosto é o mesmo de vencedora do Oscar por “Cisne Negro”, mas a pessoa que estava falando era outra. Tinha algo em sua voz que parecia estar canalizando diretamente a personalidade de outra pessoa, uma força que gritava autenticidade de todas as formas que uma atuação poderia. Durante o filme, foi essa a sensação que tive; depois da sessão veio a confirmação: uma entrevista com a Jacqueline Kennedy real mostra quão grande foi o acerto de Portman. Os movimentos lentos, sempre tentando preservar a delicadeza, a voz sussurrada e comedida de alguém que nunca se perdoaria por gaguejar, a expressão de uma mulher psicologicamente abalada, que só expressa incômodo pela lama atrapalhar seu par de saltos altos. Talvez a protagonista realmente não seja a figura mais interessante para um filme biográfico, mas se toda a coleção de hábitos estranhos funciona é por causa do talento colossal demonstrado por Natalie Portman. Sem ela, esses comportamentos seriam resumidos às aparências e a personagem a alguém bidimensional. É importante não confundir uma personalidade fútil com um personagem escrito superficialmente.
As únicas coisas que realmente me incomodaram aqui foram pontuais, mas negativas de modo geral. A primeira é a trilha sonora, frequentemente fora de sintonia com as imagens e nunca acrescentando positivamente à experiência. Passa tão batido que não faria falta. A outra envolve um certo compromisso com apresentar graficamente a morte do presidente quando presenciar o assassinato nunca foi o foco do roteiro, parece que foi colocado simplesmente pelo assunto tratar de JFK. Felizmente, nenhum destes dois elementos estragam muito os sucessos de “Jackie”. Seria péssimo ver uma premissa pouco apelativa como essa perder espaço para eventos que todos já conhecem, ainda mais quando uma performance incrível enuncia a relevância de uma história sobre esta ex-primeira dama.