De vez em quando recebo comentários depreciativos, se posso dizer, sobre eu fazer análises de obras que todo mundo já viu. Mais recentemente, “(500) Days of Summer” foi a vítima. A pessoa pode até ter um argumento sólido em relação ao fator novidade, mas isso nunca me impediu de escrever sobre o que tenho vontade. Se impedisse, provavelmente não estaria aqui falando sobre “Gone with the Wind”, a obra que todo mundo conhece e reconhece como clássico do Cinema. Até quem não viu poderia descrever o sorriso convencido estampado no semblante elegante de Clark Gable ou a imagem de Vivien Leigh em seus braços. Beira o status de arquétipo de filme antigo competente, assim como “Citizen Kane” é de filme revolucionário.
Baseado na obra imortal de Margaret Mitchell, considerado o livro mais popular da América depois da Bíblia, este longa traz os feitos e conflitos de Scarlett O’Hara (Vivien Leigh) em meio a um período de turbulência no sul americano. Linda desde que nasceu, a glória vinha até ela mesmo quando não era desejada, porém a boa vida de filha preciosa chega ao fim com o começo da Guerra Civil. Sem espaço para os luxos a que estava acostumada, Scarlett tem de lidar com a vida real e com si mesma por sua personalidade forte e intocável não ceder nem sob as condições mais áridas.
Sendo um Épico, não preciso dizer que “Gone with the Wind” aborda uma gama gigante de temas, personagens e conflitos como se fosse novidade. Vale a pena falar sobre esta característica ambiciosa porque poucas obras conseguem abraçar tanta coisa ao mesmo tempo e executá-las com sucesso. A chave para isso é focar em Scarlett O’Hara e fazer dela uma figura complexa e imprevisível, um recorte de ser humano maior do que se costuma ver. É comum o bastante livros de cinema usarem este mesmo termo, recorte, para definir um personagem. Englobar demais ou muito pouco é cair na superficialidade: um acaba sendo pretensioso e não explora nada dignamente; o outro é tão modesto que resume a essência humana a pouca coisa. Há também um princípio importante sobre arcos de personagem: o trajeto percorrido tem de ser relevante e notável. Tudo isso é apresentado extraordinariamente aqui. É muito possível ver desenvolvimento em filmes de 90 minutos, uma duração comum. Mas quando esse tempo é estendido a quase 4 horas e executado belamente, o resultado não poderia ser menos que uma das maiores personagens que a o Cinema já apresentou.
Esta é Scarlett: mimada e egocêntrica, individualista e calculista. A queridinha da família cujas pernas mal conhecem esforço porque há sempre alguém disposto a carregá-la. Os homens conhecem seu temperamento e seu gosto por luxos. Nada sobre ela fica muito tempo fora das fofocas alheias. Mas nem isso, nem a chance inexistente de romance impedem alguém de fazer seus gostos. Um ego do tamanho do seu almeja muito e nunca é satisfeito. Uma inclinada de cabeça acompanhada de um olhar preciso e a sobrancelha apenas um pouco levantada, expressão eternizada pela incrível Vivien Leigh, já denotam suas intenções. Em essência, essa é uma história sobre o conflito de uma mulher com seus desejos — paixões e ambições, mais do que sonhos no sentido romântico da palavra. Além disso, sobre como este conflito interno funciona quando a guerra, o conflito externo, chega para devastar tudo, inclusive a comodidade da protagonista. Em teoria, essa segunda parte é facilmente descrita. Para alguém que se coloca no centro do universo, a realidade nada mais é do que outro obstáculo a ser superado. Scarlett O’Hara não faz parte do mundo, ela é uma entidade à parte do mundo.
Pouco importa se há gente morrendo, tendo seus sonhos de glória devastados e deixando pais sem filhos, são apenas circunstâncias. A forma como isso se traduz torna “Gone with the Wind” realmente genial. Por um lado, a direção de Victor Fleming mostra explicitamente nas imagens o que está acontecendo; por outro, Vivien Leigh interpreta uma personagem tão centrada em si que menciona a guerra apenas quando seus ouvidos cansam de ouvir a palavra. O argumento dos dois lados é forte e cria um conflito visível entre a vontade de muitos e o desejo de uma. Cada um enxerga o que quer, a interpretação fica a cargo do leitor. É exatamente este contraste que as expressivas imagens da guerra transmitem ao colocar uma protagonista que vira o rosto para a situação em que vive.
Descrevendo dessa forma, Scarlett parece uma pessoa detestável e, de certa forma, ela é. Moralmente, não acho que existam dúvidas sobre isso, assim como não pode-se encontrá-las quando se fala sobre sua determinação. É a forma como essa qualidade é executada que suja sua reputação. A única razão que há para não chamá-la de detestável é porque não há como não amá-la. Que a personalidade seja odiada, a personagem não merece nada menos que aplauso. Transformar tantas características questionáveis em uma personagem cativante não é tarefa fácil. Por sorte, Vivien Leigh atua, ou melhor, encarna Scarlett O’Hara perfeitamente. Não foi de graça que David O. Selznick, o produtor, conseguiu colocar uma atriz inglesa no papel principal de um livro totalmente americano. “Gone with the Wind” é um espetáculo à parte por utilizar tão bem seu plano de fundo no desenvolvimento da protagonista. Scarlett nunca considerou a possibilidade de amadurecer e se desenvolver como pessoa, ela se coloca numa posição ainda mais difícil que as circunstâncias para conservar seu egocentrismo. A guerra, a fome e as dificuldades apenas ditam os termos de como sua luxúria vai se apresentar, e uma interpretação vibrante marca essa adaptação mal fadada como uma parte essencial de “Gone with the Wind”.
A história poderia ser centrada exclusivamente na figura de Scarlett. Já seria um incrível filme. Contudo, Vivien Leigh não é uma estrela que brilha sozinha. Quem seria a Senhorita O’Hara sem o galante Rhett Butler (Clark Gable)? O pôster de “Gone with the Wind” coloca ela em seus braços. A obra nunca seria o que é sem alguém para apagar o fogo da protagonista e mostrar a ela que existem outras forças no mundo. Se a guerra não apresentou um argumento forte o bastante, então talvez um homem mais esperto, mais rico e que sabe lidar com seu temperamento de leoa consiga fazer ela enxergar bom senso. Gable está num papel que, até o momento, permanece imbatível como o melhor de sua carreira. Não poderia ser para menos. Se seu papel fosse minimamente pior, tenho certeza que a dinâmica do melhor casal do cinema já não funcionaria. Leigh estabelece um padrão altíssimo que ele corresponde, traz uma mulher escondendo inseguranças debaixo de uma parte de si que amadureceu rápido demais. Seu orgulho mal acabado é o que ela tem como escudo, e Rhett sabe disso melhor do que ninguém. A beleza não o atrai tanto, ver uma garotinha crescida se esforçar para ser a tal mulher forte é o que ele gosta. Ela, por sua vez, nunca deu bola para aqueles que elogiavam sua aparência. É por isso que os dois funcionam tão bem: eles vêem o que todos os outros parecem não enxergar. Seria uma história bonitinha e romântica, duas peças encaixando, se ela não fosse oportunista, manipuladora e ambiciosa, e ele tão parecido com ela.
Outras estrelas também estão envolvidas na grande constelação de intrigas de “Gone with the Wind”. Por mais que estas não brilhem tanto quanto os dois principais, são importantes por estabelecerem contrapontos menores à figura monumental da protagonista, desenvolvendo linhas diferentes daquelas elaboradas pelo contexto da trama e pela presença de Rhett Butler. Uma dessas outras estrelas é Olivia de Havilland, uma das duas indicadas ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. É fácil olhar para sua personagem e pensar que não há alguém mais chato do que ela quando outra personalidade fantástica está no mesmo filme. Entretanto, seu papel é justamente ser uma constante quase completamente oposta à obstinação de Scarlett, mostrar que existe espaço para uma bondade imune às manipulações da protagonista. Outra estrela que vale menção é Hattie McDaniel, a vencedora do Oscar de coadjuvante. Curiosamente, nas primeiras vezes que assisti ao filme, falhei em encontrar o motivo para terem elogiado sua atuação — apesar de sempre achar seu discurso na premiação esplêndido. Dessa vez pude ver a qualidade de sua interpretação e como ela revela um defeito deste longa. Além de ser uma personalidade excêntrica e atrevida, que ainda guarda espaço para ternura e lealdade debaixo dessa fachada, ela é a única atriz que transmite em sua atuação o passar dos anos. McDaniel aos poucos incorpora o peso da idade nas sua performance, mostra que está mais cansada e menos disposta que antes. Diferente do resto do elenco e do departamento de maquiagem, que nem chegam a se preocupar com um detalhe importante numa história tão extensa.
Algo parecido acontece com “Giant“, outro Épico que encompassa anos e até décadas da vida de seus personagens e faz um trabalho fraco em representar isso. Perto de Clark Gable e Vivien Leigh numa relação ardente e ácida, de uma história de conflitos, conciliações e recomeços, e temas que harmoniza a intimidade humana com um contexto histórico, parece pouca coisa. É um detalhe menor, mas talvez seja exatamente o Calcanhar de Aquiles de um filme que não chega ao status de obra-prima por pouco. “Gone with the Wind” ainda é um clássico entre tantos outros clássicos que justifica sua reputação.