O que um homem injustiçado pelo sistema, uma noiva em crise e um elegante motorista de mau humor têm em comum? Tirando o óbvio fato de todos serem seres humanos, não parece que existe algo ligando todos eles. Falando em termos de roteiro de cinema, então, é mais complicado ainda imaginar como personagens e situações tão distintas poderiam se encaixar numa mesma história. Quem sabe numa obra de 3 ou 4 horas, mas em pouco mais de 2 horas? “Relatos Salvajes”, filme argentino de Damián Szifrón, mostra que é possível ligar tanta dissemelhança sem ir pelo tradicional caminho da literalidade.
Não existe algo que amarre os vários contos numa trama só. A audiência é apresentada a 6 arcos envolvendo pessoas, lugares e problemas diferentes: uma viagem de avião cheia de coincidências; atritos entre uma garçonete e um cliente mais que inconveniente; um passeio de carro pelos domínios da agressividade; o sistema contra o homem comum; negociações que vão longe demais; e uma festa de casamento no inferno. Mas o que conecta esses relatos? De uma forma menos sutil do que mais, todos colocam o ser humano no limite da razão. Situações tensas, estressantes e potencialmente trágicas.
Frequentemente elogio obras que conseguem usar a sutileza para transmitir seus significados. Nos Anos 40 e 50 do Noir — meu gênero preferido — era estritamente proibido tocar em assuntos considerados avessos à moralidade americana. Mesmo assim, o gênero navegou pela imensidão do mar da podridão humana, suavemente se esquivando da censura. Às vezes a melhor forma de comunicar algo é justamente não falar diretamente. Mas em outras situações ser curto e grosso pode ser a melhor tática. “Relatos Salvajes” leva este lema a sério com histórias que explicitam a imprevisibilidade da psique humana através do exagero e do choque. Mais dramático que cômico, talvez tudo possa ser encarado como um tipo de humor negro. Para mim, é o sarcasmo impresso em eventos absurdos, mas incrivelmente potentes.
É louvável como “Relatos Salvajes” mostra conteúdo superando as convenções tradicionais da forma. No fundo, este longa é uma coleção de 6 curtas-metragem unidos por um mesmo elo temático. Nenhum personagem de uma história aparece novamente em outra, tudo muda para mostrar o mesmo conceito de outra forma. Diferente de um comediante que repete suas piadas, o roteiro consegue se renovar para dizer a mesma a coisa em outras palavras — ou imagens, neste caso. A lógica permanece a mesma em todos os arcos: apresente os personagens, um grande problema e faça as coisas darem tão errado quanto podem. De seu jeito peculiar, esta é uma lição de como escrever um roteiro, é o conceito de conflito como combustível da história colocado de forma clara. Não só isso, pois mostra que domina também o campo da edição ao usar o tema para conectar imagens sem nenhuma ligação imediata. Mais do que um feito técnico por si, o filme usa estas mesmas conquistas para um efeito dramático que faz o espectador questionar o que se passa diante de seus olhos. “As coisas não podem piorar mais” e “Não boto fé que isso aconteceu” definem bem alguns dos melhores momentos aqui.
A soma de seis argumentos sobre o mesmo assunto pode parecer a receita perfeita para um filme repetitivo e cansativo, afinal o assunto não muda. Cada história gira em torno do mesmo núcleo invariavelmente. Falam da natureza humana caminhando em direção à insanidade. Por que funciona? Primeiramente, porque a psique humana é uma fonte inesgotável de originalidade e novidades. Enquanto existir gente na Terra haverá material para o Cinema. Em segundo lugar, a estrutura fragmentada tira proveito do potencial de um curta-metragem. Não há criatividade no mundo que prevaleça sobre as regras do tempo; 30 minutos simplesmente não comportam histórias de qualquer dimensão. Um bom curta aproveita a objetividade para afirmar algo com ainda mais força, exatamente o que “Relatos Salvajes” faz. Seis vezes. Não há tempo para escalar a ação e o drama aos poucos, só há o bastante para expor uma idéia e colocá-la em prática. O que também não é dizer que não exista de desenvolvimento num plano mais geral. Enquanto a primeira história causa apenas um choque, as outras chocam ao passo que ganham profundidade pelo tema ficar mais claro a cada vez que é exposto de um jeito novo.
Nesta história, existem várias formas de perder o controle, mais especificamente dois sentimentos: revolta e vingança. Ambos andam de mãos dadas aqui e não poderia ser diferente. Não existe uma vingança boa sem um toque de emoção por trás dela, mesmo que pequena. Caso contrário ela é vazia e, no caso de um filme, desinteressante. Por mais fragmentado e repetitivo que “Relatos Salvajes” possa parecer, ele funciona por tocar num lado da psique que nunca é igual para todos, mas, primitivo como é, conserva sua essência. É incontestável o fato de que a injustiça chega para todos uma hora. Nem sempre a pessoa se vinga, mas aquela vontade de matar algum fulano acaba surgindo; não passa de uma fantasia ou pensamento impulsivo, que passa assim que as cabeças esfriam — e assim espero. Já é o bastante para plantar a semente da discórdia, uma mistura de válvula de escape com um banho de realidade. Quando a tragédia acontece, resta a surpresa e um tipo de alívio; afinal de contas, o pensamento já passou pela cabeça de todos, só não foi mostrado em cores vivas. E claro, sempre há um sutil sentimento de que a justiça foi feita. De uma maneira exagerada e frequentemente inapropriada, contudo, sempre metafórica.
Dizem que a vingança é melhor servida fria. Talvez este longa tenha algo a dizer sobre isso, pois aqui ela é servida em forma de bolo, de batata frita, moída e até tostada. E quanto ao motivo do sucesso de “Relatos Salvajes”? Foi dito que o responsável foi o apelo comercial, mas tenho de discordar quanto a isso. A maior razão por trás do sucesso desta obra no circuito comercial é sua qualidade. Diferente de muitas trabalhos dos circuitos independentes, ser diferente não é a única característica relevante.