Todo mundo tem uma época querida em que gostaria de morar, se possível. Os Anos 50 do cigarro com bebida, os Anos 60 do movimento hippie e dos Beatles, os Anos 70 das discotecas… Não faltam anos, tendências e momentos históricos para inspirar os sonhadores e os românticos. Como isso funcionaria numa obra de Woody Allen? Bem, de uma forma tão bem executada que “Midnight in Paris” se tornou referência de bom filme entre os trabalhos mais recentes do diretor. Não é por menos: é uma das premissas mais criativas de sua carreira.
Gil (Owen Wilson) é um roteirista bem sucedido de Hollywood. Esposa de fazer inveja, férias em Paris e hotel de seis estrelas são todos parte do pacote. Mas nem tudo está tão bem quanto parece. Gil está terminando seu primeiro livro e sofre por não saber se está no caminho certo. Para o desgosto de Inez (Rachel McAdams), sua mulher, ele passa muito tempo sonhando acordado em vez de fazer as coisas que interessam a ela. Inez quer fazer compras e seguir o roteiro de turista; ele quer caminhar sob chuva porque não há nada mais romântico que isso para ele. Isto é, exceto pelos Anos 20, época que ele idolatra e conhecerá inesperadamente.
Não seria incrível ver o show de um artista que não está mais vivo? Ou quem sabe ver se Woodstock foi realmente toda essa loucura? Os Anos 20 podem não parecer ter esse charme todo porque muitas coisas comuns hoje não existiam ainda. Para mim, pelo menos, não seria muito interessante uma época em que o cinema apenas engatinhava. Felizmente, essa história é sobre Gil, não sobre mim. Ele é um dos adeptos mais fervorosos do romance parisiense; caminhar nas ruas à noite, sentar num café e tomar um coquetel, apaixonar-se a cada esquina enquanto carrega uma baguete debaixo do braço. Ele estaria satisfeito se passasse o resto da vida nessa rotina. Voltar 90 anos no tempo e manter essa rotina, então, é seu sonho entre sonhos. Impossível, claro, porém não em “Midnight in Paris”. Até que ponto isso funciona? Imagino que voltar no tempo para uma época tão peculiar não seja do gosto de todos, por isso uns podem aproveitar certas partes aqui mais que outros; afinal encontrar Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e Salvador Dalí pode não ser tão legal quanto encontrar John Lennon. Ídolos ou não, todos estes nomes rendem personagens espetaculares numa história que ganha força com tantas figuras singulares. Hemingway é considerado um dos maiores escritores da história, já aqui é um boêmio que fala sempre num tom poético e exageradamente másculo. Como diabos alguém pode escrever livros geniais e beber até ter vontade de sair trocando murros? Não importa se faz sentido ou se o espectador é fã dele, é apenas outro personagem incrível no rol de ícones em “Midnight in Paris”.
Hemingway é o completo oposto de Gil. Um é a manifestação da testosterona, o outro é uma das várias versões do estereótipo Woody Allen — diferente a ponto de ter sua originalidade, sendo justo. Mais curioso é o fato de Owen Wilson ser o ator por trás dele. Famoso por filmes puramente comerciais, Wilson criou sua imagem como o típico ator que estrela comédias de mau gosto e um trabalho decente muito de vez em quando. Por incrível que pareça, Wilson entrega uma atuação tão boa que é um pouco lamentável que ele não faça escolhas melhores de carreira. Não tão neurótico e perdido quanto o Woody Allen clássico, ele se encaixa melhor num perfil de eterno romântico; a perfeita escolha para uma história que trata de paixões carnais e oníricas. Suas idéias fluem tanto em Paris que ele mal consegue organizá-las num tipo de confusão adorável, mais ainda nos olhos de Adriana (Marion Cotillard), que também não escapa os olhos de Gil. Melhor que um romance, apenas um que seja improvável e impossível. Existe algo mais charmoso do que uma namorada do passado?
Woody Allen não só apresenta uma premissa interessante como também adiciona temas para não limitá-la ao legalzinha ou potencialmente boa. Por um lado, dá para facilmente colocar “Midnight in Paris” na categoria do Romance. Mas não é só isso. O interesse amoroso do protagonista demora um tempo considerável para aparecer e mesmo quando surge não rouba a cena. Allen joga de maneira inteligente quando não deixa o gênero moldar seu roteiro, moldando ele mesmo o gênero a seu favor. O foco é o protagonista e em momento algum deixa de ser. Ele sai pelas ruas não pelo simples prazer de cansar as pernas, mas para ponderar sobre a constelação de problemas, idéias e sonhos em sua cabeça. Sua relação com o mundo a sua volta é o que movimenta este longa e, dada a importância atribuída, daria até para dizer que a própria Paris é um dos personagens mais importantes aqui. Qual a razão dos devaneios de Gil? Por que ele briga com sua esposa? Por que tantos famosos num bar? A capital francesa é o problema e a solução aqui, dualidade que o roteiro aproveita tendo consciência que nem todos os personagens são tridimensionais. Muitos têm papéis limitados, mas no contexto apresentado fazem todo o sentido sem se chamar a atenção negativamente. No fim, há um pouco de tudo para engrossar um enredo aparentemente raso. Existem os toques neuróticos e a confusão mental do diretor, os problemas eternamente insolucionáveis e a busca pela satisfação plena nunca atingida.
A única que posso dizer com absoluta certeza que me incomodou foi uma gigantesca coincidência ser o estopim para uma grande reviravolta na trama. Talvez seja o único ponto definitivamente preguiçoso do roteiro de Allen, mas felizmente não é grave o bastante para ferir a obra como um todo. “Midnight in Paris” permanece como uma história inteligente e multi-facetada, com uma aparência simples e muito conteúdo por trás dessa simplicidade.