Entre duas opções, ser traído por amor ou ser traído por paixão, qual a menos pior? O ideal seria não passar por nenhuma das duas; abandonado por outro alguém ou traído num deslize casual, o resultado é o mesmo. Mesmo na atual sociedade de cada vez menos tabus, a infidelidade está muito longe de ser aceita; quem dirá em meados dos Anos 40, uma época em que os supostos bons costumes eram firmemente impostos. A pergunta que fica é: como “Brief Encounter” saiu do papel? Não imagino que havia mercado para o polêmico assunto abordado, então só agradeço que, como toda boa arte, deram um jeito de tirar essa incrível história do papel.
Laura Jesson (Celia Johnson) é uma mãe de família como qualquer outra: dois filhos, um marido compreensivo, uma casa bem decorada e nada a reclamar. De tarde, as crianças estão na escola e ela pega o trem para a cidade para fazer compras, ver um filme ou simplesmente almoçar fora, voltando no final da tarde para encontrar o marido fazendo palavras cruzadas de chinelos e lareira acesa. Não é uma vida cheia de emoção, mas é uma rotina agradável. Tudo fica nos conformes até que Laura conhece Alec Harvey (Trevor Howard) num de seus passeios, um gentil e bem-intencionado rapaz que mexe com ela intensamente.
Um mandamento da escrita de roteiro dita que o texto deve descrever imagens e apenas imagens, tudo o que pode ser visto numa tela. Isso significa que pensamentos estão fora de jogo, pois a não ser que se tente ilustrar processos mentais com imagens — como Sergei Parajanov tentou e falhou em “Sayat Nova” — é melhor adaptá-los de outra forma. O grande problema nessa tarefa é que livros têm liberdade para inserir divagações de seus personagens naturalmente, o que não acontece no cinema. Uma garota cortejada por um rapaz que namora, por exemplo, pode imediatamente pensar: “Como ele pode um homem comprometido fazer isso?”. Num filme simplesmente não se pode pausar a narrativa e a ação para dizer o que o protagonista pensa. Bem, “Brief Encounter” é a grande exceção dessa regra. O longa não só mostra que há lugar para o mundo interior no cinema como também prova que criatividade é o que há na hora de quebrar algumas regras.
Os eventos são vistos como se fossem no presente, embora todos estejam na cabeça de Laura enquanto ela sonha acordada na sala de sua casa, sentada num sofá com seu marido na outra poltrona. Mesmo assim, essa coleção de lembranças não impede que outras divagações aconteçam — da maneira mais formidável possível, diga-se de passagem. Não é completamente comum uma pessoa que está pensativa ou em conflito simplesmente se desligar do mundo? É o que acontece aqui. A ação não espera a personagem ou o espectador, ela é propositalmente colocada em concorrência com o resto do mundo.
Através do olhar dela, o espectador conhece um pouco sobre sua história e sua realidade em geral. “Brief Encounter” trata essencialmente de um assunto, mas sob tantos escopos e em tantas esferas diferentes que dificilmente pode ser limitado a ele. Num ponto de vista histórico, por exemplo, é um marco da expressão de uma parcela inteira da sociedade; uma mulher, que não pode fumar em público porque é mau visto, desejando outro homem quando tem uma família perfeitamente boa. Por outro lado, é uma visão quase angelical de uma profanidade. Poucas vezes houve tanta sinceridade entre dois seres humanos que vão contra os votos feitos sob os olhos de deus, ou ainda, uma traição ser mais verdadeira que amores supostamente eternos. É um romance sincero pois de romantizado não há nada, desde a escolha de atores com feições comuns até os eventos do roteiro colocam tudo num plano bem palpável. A história é uma, os pontos de vista são vários; pode ser uma simples trama de amor, uma tragédia, a personificação da reprimida mulher da época ou simplesmente um olhar sobre os Anos 40.
Seu diretor, David Lean, é bem conhecido por entregar algumas das imagens mais belas de todos os tempos em “Lawrence da Arábia” e “Doutor Jivago”. Um filme antes disso — como “A Ponte do Rio Kwai” — carecer da mesma estética cuidadosa pode até sugerir que nem todos os trabalhos de Lean sejam tão belos assim, mas nem nesse respeito “Brief Encounter” decepciona. A primeira cena logo indica que não há negligência alguma com as imagens aqui quando um trem passa pela estação deixando para trás apenas sua fumaça bem definida. Tons de preto, cinza e branco pintam um Romance como se fosse um Noir, abusando de tons agressivos para mostrar como a ambiguidade permeia aqueles atos. Mais que bonito, é curioso ver como elementos distintos constroem efeitos tão diferentes sem nunca bater de frente, anular os atos do outro ou deixar a obra sem foco. Os atores e o enredo indicam uma história de amor cativante, só que tudo está longe do simples afeto entre duas pessoas; nenhum deles poderia estar ali, em primeiro lugar, suas vidas simplesmente os levaram para lugares diferentes. É aí que a entra a iluminação forte e os tons bem definidos de preto e branco, frequentemente usados nas ríspidas tramas do Noir para aqui dar um tom de abatimento e até desilusão, uma dualidade que anda lado a lado com as vidas duplas dos protagonistas.
Novamente entrei numa grande confusão quando achei que “Brief Encounter” era outro filme de David Lean, “The Passionate Friends”. Um livro de Edição descreve uma cena deste último e, pelo assunto, achei que se tratasse da obra aqui analisada. Felizmente, estou tendo sorte com esses enganos quando eu frequentemente encontro obras excelentes como essa: um grande Romance com toques de um drama mórbido e umas boas pinceladas da história da época.