Se o Cine Grandiose tivesse uma sessão de clássicos que não são tudo o que dizem, “Goodfellas” certamente estaria nela. Claro, é apenas uma opinião numa multidão de aplausos, mas é tipo café para algumas pessoas: o cheiro evoca imagens nostálgicas, como uma avó passando café à moda antiga, mas o gosto amargo simplesmente não corresponde à expectativa. Pode ser o melhor filme de Martin Scorsese para muitos, ao passo que para mim não é um filme ruim nem nada do tipo; apenas passa longe do gigante que muitos pintaram ao longo dos mais de 25 anos de seu lançamento.
A trama pode ser definida como outra história de ascensão e queda de Scorsese, embora vá muito além e talvez seja problemática justamente por este detalhe. Henry Hill (Ray Liotta) é um garoto de ascendência meio irlandesa e meio italiana. Ele nunca poderá ser realmente parte de uma família do crime por não ser italiano puro, mas isso não impede que ele ande entre os canastrões do crime e se crie naquele meio. No meio do caminho ele conhece duas figuras que o acompanham em sua vida de crime: Jimmy Conway (Robert De Niro) e Tommy DeVito (Joe Pesci). Juntos, os três descobrem o verdadeiro significado de ser um gângster; tanto o lado dos drinques e ternos finos como o lado sujo dessa história.
Na primeira vez que vi “Goodfellas” fiquei com um belo ponto de interrogação quando os créditos rolaram. Não porque fiquei sem entender alguma coisa — o longa é bem claro neste aspecto — mas por sentir que faltava algo. Alguma coisa não cheirava bem. Depois de anos, decidi dar outra chance e ver se não era meu estado de espírito ou outra coisa do tipo que afetou meu julgamento. Afinal de contas, é um pouco complicado sair declarando guerra contra algo bem conceituado sem ao menos ter um motivo concreto. Acredito que este motivo veio numa segunda assistida. Em essência, ainda é um filme de máfia: pega o bom, o ruim, o glamouroso, o nem tanto e ainda expande o conceito da típica trama de ascensão e queda. Abordam literalmente tudo o que se espera e também o que não se espera em um longa metragem de 146 minutos.
Não é pouco tempo. Está mais perto de um Épico do que do típico longa-metragem de 100 minutos e ainda assim parece pouco para o tanto de coisas que apresentam. É praticamente todo o conteúdo que “The Sopranos” mostrou em 6 temporadas comprimido em um filme só. Também não culpo Scorsese. Dificilmente uma abordagem diferente aliviaria este sentimento, então só resta supor que talvez com mais tempo ou menos material as coisas ficariam melhores. De certa forma, “Goodfellas” parece quase um documentário. Nunca achei que reclamaria de detalhes numa trama, mas aqui vão longe demais. O conceito de gângster é explorado a fundo, chegando aos mínimos detalhes que dão a impressão de que o mafioso é um animal sendo dissecado. Exatamente como um documentário — e não um dos melhores — faria com seu objeto de estudo. O que era para ser profundidade torna-se exposição, aspecto perigoso se não executado com cuidado.
Gângster: onde vive, o que faz, como e quando. Quem achar tais questões elementares não estará errado, o problema é quão longe se vai a partir disso. A partir da figura de Henry Hill se abre uma, ou melhor, várias portas para o que é ser um mafioso. O filme pega sua infância e mostra seu envolvimento inicial com a cosa nostra, então desenvolve seu progresso: o que ele acha daquele estilo de vida e o que seus pais acham do caminho escolhido por ele. Henry progride e conhece seus parceiros, Jimmy e Tommy. Com eles aprende-se mais sobre como um canastrão age, o que ele pode e não pode fazer e porque uns vivem e outros morrem; salvando espaço até mesmo para o que eles comem, quando eles comem e com quem. Aí entra a vida pessoal do protagonista e o conceito do cara com duas famílias, a de sangue e a de coração. Henry Hill conhece sua mulher e mostra-se pelo que ela tem de passar durante o casamento, qual a vida de outras esposas do crime e como ela enxerga tudo aquilo. Há todo o glamour que vem com uma vida de dinheiro, drinques e luxos, mas e quando alguém se dá mal? Não poderiam deixar de fora, claro.
No final das contas a experiência fica um tanto esmagadora. Nunca chata ou desinteressante, apenas extremamente expositiva. Uma das várias cenas de restaurante — ícone de obras de máfia — representa bem este sentimento: a câmera simula a perspectiva do protagonista, dá uma bela volta no lugar e apresenta todo e qualquer meliante presente; focando nas várias figuras ali e dando ao menos uma característica marcante para cada. Era realmente necessário saber quem são esses caras? Inicialmente parece que sim, pois o diretor só pode ter colocado por uma boa razão. Eventualmente, a história diz que não. Pior ainda é essa avalanche de material ser liderada por Ray Liotta, que, particularmente, é um ator que não me atinge muito — ainda menos depois das decisões que seu personagem toma. Sua interpretação em si não é terrível. Ela cumpre seu papel, mas parece que nunca está a par do que o personagem pede. O ator está ali em carne e osso, não em espírito, como se estivesse acima do papel que lhe foi dado.
Pelo menos o nome de Martin Scorsese não é exatamente o que eu chamaria de ruim em “Goodfellas”. A história, que procura documentar todos as facetas das vidas dos envolvidos, não poderia ser melhor dirigida. Com exceção da narração — às vezes um pouco excessiva — a direção de Scorsese dosa bem violência, humor, suspense e as características músicas licenciadas na trilha sonora; sempre atenta ao que cada momento da história procura mostrar. Justamente por isso a presença do narrador acaba sendo desnecessária, as imagens são bem claras em sua mensagem. Ainda que a história exagere na ambição, há alguns vários momentos nada menos que soberbos ao longo do filme. Conhecer todos os bandidos da história é irrelevante e fica gratuito no fim das contas, enquanto cenas como a janta na casa de Tommy e a revelação no telefone públicos são pérolas num filme falho.
Claro, é difícil imaginar como estes momentos poderiam dar errado com Joe Pesci e Robert De Niro no comando. O primeiro está simplesmente no melhor papel de sua carreira. É o mesmo nanico de pavio curto sem limites, só que em sua melhor forma; o que resulta na clássica cena em que ele praticamente se auto-satiriza ao assustar o protagonista numa discussão. De Niro, por sua vez, tem um papel um tanto menor que em suas outras colaborações com Scorsese. Ele fica mais no fundo, como suporte, porém não deixa de render ao menos uma grande cena, resultado de seu talento aparentemente sem limites. Ambos representando bem o costumeiro elenco de personagens fortes das obras de Scorsese.
Este acabou sendo um de meus textos mais longos, mas acredito que uma explicação se fez necessária. Nunca fui muito com a cara de “Goodfellas” e hoje acredito que posso dizer o porquê: é tanta coisa no mesmo produto que fica demais para um longa-metragem só. Provavelmente não mudará a opinião de ninguém nem fará com que a reputação deste clássico se manche, o que não é meu objetivo. São apenas minhas impressões sobre um aclamado filme que não desceu tão bem.