Se alguém perguntar qual a fórmula para um bom filme de ação, muitos responderão que mais ação de bom gosto trarão um bom resultado. Isso funcionou com “Mad Max: Fury Road“. que dá uma aula de como criar boas cenas, da direção de arte às explosões em si. Por outro lado, “Heat” é um longa que alcança o sucesso sem seguir esta fórmula. Em vez de focar no agito e no fogo pesado, este longa investe em tudo que cerca esta ação, como os personagens, o contexto e as relações secundárias — normalmente consideradas menos relevantes — tornando a experiência muito mais completa que o típico filme policial.
A história aqui começa com a execução de um grande crime: o roubo de um carro forte carregado de coisas de valor. Tudo corre como o planejado, até que um dos assaltantes tem um momento de desequilíbrio e mata um dos guardas rendidos, forçando os outros bandidos a matar o resto. Esse deslize não passa em branco, pois o detetive Vincent Hanna (Al Pacino) toma interesse pelo caso, determinado a capturar os responsáveis a qualquer custo. Contudo Neil McCauley (Robert De Niro), a mente por trás deste e outros grandes roubos, não é uma pessoa que entrega o jogo tão facilmente, sendo tão determinado quanto Hanna no que faz. O resultado não poderia ser diferente: um conflito de duas personalidades totalmente focadas em seus objetivos, sem espaço para distrações de qualquer tipo.
Beirando as 3 horas, este longa-metragem foi uma surpresa por ser um tanto diferente do que eu esperava. Em primeiro lugar, não sabia que ele era tão longo; em segundo não tinha idéia que a história seria tão comportada e profunda quanto foi aqui. Nenhum destes dois aspectos foi negativo, felizmente, pois desde o começo Michael Mann, o diretor, busca uma experiência diferente. As cenas de tiroteio, perseguição e destruição estão em menor quantidade e ainda assim conseguem manter um bom nível de qualidade; menos exposição não significa menos satisfação aqui. Com “Heat”, Mann expande o estereótipo do filme de ação, policial e similares, trabalhando tudo que é normalmente esquecido em obras que lotam os cinemas por aí.
Mas como focar nos elementos que não são os atrativos comuns do gênero funcionaria bem? Filmes como esse me levam a crer que usar elementos de um gênero diferente sempre dará certo, desde que sejam bem executados. Um bom exemplo disso é o próprio “Star Wars: Episode II – Attack of the Clones“; o mundo inteiro sabe que ele poderia ter usado cenas melhores de romance. Mesmo sendo uma Space Opera, partes do gênero Romance marcam presença, ainda que negativamente. Somadas às cenas de roubo e tiroteio estão várias sequências que são tensas de maneira muito mais calma, colocadas ali especialmente para desenvolver os dois protagonistas. Em um momento, Hanna está em casa discutindo com sua esposa sobre seu casamento; em outro, Neil mostra um pouco de humanidade ao conversar com uma estranha em um café. Muitos podem esperar que os protagonistas sejam os solteirões que, eventualmente, dão uma pausa de salvar o mundo para pegar a mocinha. Aqui não. Hanna é o homem por trás da lei, aquele que representa a ordem e os bons valores, mas sua vida pessoal o coloca longe de ser um cidadão modelo. Já McCauley conta uma outra história. Reservado, austero e focado em seus objetivos, ele poderia muito bem ser o pai exemplar de uma família tradicional caso não tivesse uma carreira no crime.
Aos poucos a obra torna-se menos uma guerra do certo contra o errado e mais um conflito entre duas mentes similarmente imperfeitas. Não importa mais quem vai vencer, não haverá motivos de comemoração pois não há heróis ou vilões; são duas pessoas que, por ironia do destino, estão de lados diferentes da lei. Não foi para menos que um amigo meu, que viu um trecho do filme, perguntou se o filme era de Drama por ter tanto diálogo; de fato as conversas estão em maior número que a ação. Se o bom desenvolvimento dos personagens não parecer atraente por si, há sempre o chamariz das estrelas. Destaque vai, obviamente, para Robert De Niro e Al Pacino, participando em um mesmo filme desde “The Godfather: Part II” em 1974, embora eles não dividam nenhuma cena nele. De Niro escapa de seu típico papel de mafioso, indo para o lado mais introvertido da personalidade humana e de sua forma entrega um personagem único em sua vasta carreira. Ao passo que Al Pacino decide partir para um personagem mais caricato, ainda que não literalmente. Talvez seja apenas eu, mas os súbitos ataques histéricos de seu personagem acabam criando um alívio cômico bacana, uma quebra da seriedade que este longa procura manter na maior parte do tempo.
Como dito, não é porque a atenção do diretor esteja no desenvolvimento de aspectos supostamente secundários da história que o resto sofre. Não só os atores estão em boa forma, como a ação e todas as cenas tranquilas contam com a direção firme de Michael Mann. Neste sentido, é claro que os momentos agitadas mostrarão melhor a perícia do diretor, como pode ser visto, especialmente, em uma sequência de assalto que até hoje marca presença em várias listas de “Melhores Cenas de Ação”. Nelas, Mann tem sucesso por não só capturar bem o que acontece — elemento importante num tiroteio com fuzis automáticos — mas por usar o ambiente a seu favor, seja ele qual for. Centro de Los Angeles, tomado pelo trânsito, por tiros, policiais e inocentes perdidos? Sem problema, nenhum destes fatores dificulta a compreensão da cena. Cenário calmo, com nenhum movimento? Tensão e suspense, um tiroteio em que a munição é apenas o silêncio absoluto.
Para muitos, “Heat” pode ser uma experiência esquisita. Tratado muitas vezes como um dos grandes filmes de ação, um espectador desavisado pode não encontrar exatamente o que espera, especialmente pelo começo agitado apoiar ainda mais esse rótulo. Esta é uma obra que vai além de delimitações e clichês de gênero, é uma história que pega a receita para um bom filme policial e incrementa com todo o desenvolvimento que outros exemplos do gênero carecem.