O nome “Charada” pode lembrar mais um jogo de tabuleiro infantil que um suspense, mas este é o melhor filme de Hitchcock não dirigido por Hitchcock. Ao menos é assim que muita gente descreve este filme, que na prática é mais ou menos isso mesmo. O tema de mistério e romance são os traços mais óbvios desta semelhança, enquanto outros elementos tornam esta comparação ainda mais válida, como a trama sobre um mal-entendido envolvendo inocentes. Usam um casal aqui, tal como em “The Man Who Knew Too Much”. Até mesmo a característica aparição do diretor está aqui, mesmo que um pouco mais sutil.
Em uma viagem aos Alpes, Regina Lampert (Audrey Hepburn) decide que irá se divorciar. Ela não ama mais seu marido e percebe que ele também não ama ela, mas voltando para casa descobre que não há mais nada. Suas roupas e todos seus móveis sumiram, sem nenhum motivo aparente. Mal tendo chance de absorver aquele impacto, ela recebe outro choque: seu marido é encontrado morto numa ferrovia, antes mesmo dela ter a chance de pedir o divórcio. No velório, três homens estranhos aparecem; não para velar o falecido, mas para importunar Regina à respeito de milhares de dólares que seu marido supostamente deixou para ela. Sem saber de nada sobre tal dinheiro e sofrendo perigo de vida, a moça deverá escolher bem em quem confiar se quiser sair ilesa desta confusão.
Como já foi dito por Jean-Luc Godard, não importa onde você tira as coisas, mas para onde você as leva. Nada é absolutamente original hoje em dia, então acredito que esta obra ser tão similar ao trabalho do Mestre do Suspense é irrelevante. Não há cópia, nem plágio. O que esta obra entrega é um grande filme que usa as ferramentas certas para um Suspense, até indo além ao adicionar elementos de Comédia e Romance em sua fórmula. Sim, “To Catch a Thief” misturou Suspense e Romance — além de também estrelar Cary Grant — 8 anos antes, só que não chega a ser tão bom quanto “Charada”. A história ser mais complexa e melhor trabalhada aqui mostra como houve maior preocupação com a parte do Suspense, escolha que faz a diferença. O resultado é um filme com muito mais substância, que usa elementos do passado e os muda para que não haja déjà vu. Surpreendem o espectador com novidades, não com uma reviravolta requentada.
O relacionamento entre Cary Grant, que eventualmente se envolve na tramóia, e Audrey Hepburn representa bem este sentimento. O casal envolvido em um grande mistério já foi visto incontáveis vezes por aí, não só nas obras de Hitchcock. A escolha de Cary Grant, em teoria, reforçaria o fato que desta obra procurar saídas seguras, só que este não é o caso. Em sua carreira, o ator nunca foi famoso por desviar demais de seu personagem de sempre, algo parecido com John Wayne, e aqui não acontece muito diferente. Sua atuação suave e elegante de sempre tem um complemento: um detalhe pessoal torna sua atuação muito mais interessante. O ator relatou que contracenar amorosamente com Hepburn, 25 anos mais nova que ele, o deixava desconfortável. No entanto, em vez de sua performance sofrer por conta deste detalhe, ela melhora.
Ele poderia muito bem ter entregado uma atuação travada, mas acaba mudando seu próprio personagem para que sua idade seja parte dele. Tomando o caminho contrário do James Bond de Roger Moore, que tinha 57 anos durante as filmagens de “A View to a Kill”, Grant desenvolve seu relacionamento de forma que a idade seja uma novidade, não um empecilho. Um homem claramente mais velho com uma garota jovem não é mais esquisito, é curioso. Por outro lado, algo que devia ter agradado e me incomodou foi a direção de fotografia, que falha em capturar o glamour dos locais de filmagem. Isto mostra que se passar em Paris, uma cidade descrita por muitos como glamourosa, não transmite nenhum gliter para as imagens, tudo parece artificial, barato e até mesmo sujo. Neste caso, a culpa com certeza não foi da resolução da imagem, as cores e os cenários simplesmente não transmitiam vida, o que torna a parte visual deste filme uma decepção. Para quem quiser argumentar que este estilo poderia ter sido a intenção do diretor, digo que alguns elementos simplesmente não refletem esta suposta finalidade; basta uma olhada em alguns cenários elegantes por natureza ou mesmo nas roupas Givenchy de Hepburn.
Dizer que esta obra é produto do legado que Alfred Hitchcock deixou no Cinema é mais do que correto. Suas obras, embora não sejam perfeitas, mostraram que o cinema bom não é cinema de nicho. É apenas natural que outros cineastas busquem nele inspiração para criar coisas novas. O que surpreende mesmo é que “Charada” não é apenas bom, ele está no mesmo nível, se não acima, dos filmes em que se inspira.
1 comment
Eu não poderia ter lido palavras mais corretas sobre este filme que, sinceramente, é um dos meus favoritos com a Audrey. A história é bem contada e a química entre os dois protagonistas é tão deliciosa de se assistir, a cena no chuveiro sempre arranca uma boa gargalhada! Adoorei!