Eu nunca tinha ouvido falar de “Um é Pouco, Dois é Bom”. Essa foi uma das oportunidades que o Olhar de Cinema proporcionou de trazer um filme relativamente obscuro do cinema nacional para um público maior, mesmo que somadas as duas exibições não alcance 200 pessoas. Outro ponto positivo é que recentemente foi feita uma restauração e digitalização das películas, resultando numa cópia em resolução 4K e uma imagem cristalina, algo louvável mesmo que o filme não tenha sido muito do meu agrado. Realizado em 1970 com aparentemente nenhum orçamento quase, a obra é composta por dois segmentos — um é pouco e dois bom, afinal: o primeiro é um drama chamado , e o segundo uma comédia.
“Com um Pouquinho de Sorte” conta a história de um casal recém-casado que se prepara para receber o primeiro filho. Jorge (Carlos Carvalho) é motorista de ônibus e tem ganhado muito bem nos últimos tempos, arriscando dar entrada num apartamento novinho para sua esposa Maria (Araci Esteves) ter todo o conforto que precisa. No entanto, a segurança dura pouco e logo a família se encontra numa situação desesperadora. Já “Vida Nova por Acaso” conta a história de uma dupla de ladrões de quinta categoria que tentam ganhar a vida com pequenos golpes e furtos, conseguindo só um trocado para conseguir pagar o lanche do dia e talvez uma cerveja. Isso muda quando Crioulo (Odilon Lopez) conhece uma garota rica que começa a tratá-lo como seu namorado e dar tudo o que ele pede.

Os dois médias-metragens não têm muito a ver entre si. “Um é Pouco, Dois é Bom” está mais para uma double-feature de dois curtas, quase como um “Grindhouse” de Quentin Tarantino, usando um exemplo mais recente, que reunia “Death Proof” e “Planet Terror” numa exibição só. Talvez apenas os aspectos de tema e contexto sejam os elos entre os dois médias. Ambos representam um novo movimento de representar outro lado da sociedade brasileira e da sociedade gaúcha, mais especificamente. Enquanto “Saludos Amigos” e “The Three Caballeros” fortaleciam a imagem do gaúcho como um ser do interior, dos pampas e quase um caubói sul-americano, a obra de Odilon Lopez traz um lado urbano da vida em Porto Alegre e um foco na classe média do meio do caminho.
Já não se fala mais do gaúcho de bombacha, agora as referências são mais modernas e relacionáveis. Amigos meus gaúchos reconheceram partes de Porto Alegre exibidas no filme, por exemplo, e outros puderam reconhecer partes da cultura urbana como intrigas de bairro ganhando magnitude e atraindo vendedores de pipoca e ambulantes vendendo faixas dizendo “Inter Campeão” e “Grêmio Campeão”. Além disso, ambas as histórias lidam com sorte ou a falta dela, de certa forma, e a eterna insegurança da classe média, que mantém sua posição precariamente por não estar em constante miséria como as classes baixas ou riqueza como os ricos. Eles podem perder seu status a qualquer momento, e a primeira história ilustra isso com os dois salários sendo necessários para sustentar uma casa razoavelmente. Já a segunda trata mais de um golpe de sorte que tira malandros da pobreza do nada, mas que também é uma corda bamba.
Queria poder dizer que “Um é Pouco, Dois é Bom” é excelente. O que posso dizer é que é um filme mais divertido do que bom, isto é, a experiência foi mais interessante e até divertida sem que criticamente a avaliação seja muito positiva. Ambas as obras possuem um lado humorístico por trás delas, de uma forma ou de outra. Foi engraçado ver o ambulante com as faixas dos times, por exemplo, e uma das maiores viradas da primeira história tem um tom brusco que acaba saindo cômico, que talvez fosse a intenção desde o começo. De qualquer forma, fica claro que Odilon Lopez se sai muito melhor tentando Comédia do que Drama, de longe.

“Com um Pouquinho de Sorte” às vezes é engraçado sem querer. Alguns momentos são intencionais, claro, ao passo que outros são fruto de más atuações ou uma apresentação bizarra que não consegue comandar as emoções certas. Os diálogos chamam a atenção por serem de Luis Fernando Verissimo; inicialmente por ser ele e posteriormente porque são muito ruins. São todos engessados ao máximo e saem dessa forma da boca dos atores, que muitas vezes constatam o óbvio como “Hmm que delícia este abacaxi, meu amor” ou “Tenho uma surpresinha para você domingo!” e coisas assim. O que começa como um retrato da classe média gaúcha do nada se torna um tipo de “Straw Dogs” ou “Cool Hand Luke” de vinte reais com direito a clichês descarados e totalmente desconexos com a realidade.
“Vida Nova por Acaso” funciona bem melhor porque já não tem a preocupação de ser dramaticamente crível nem exige performances muito complexas. Odilon Lopez e seu parceiro de cena, Francisco Silva, tem um talento claro para a comédia. Até esquetes não muito complexas ou bem pensadas em termos de composição e mise-en-scène funcionam porque existe carisma por trás da execução. Até porque pedir complexidade aqui seria complicado com um orçamento tão baixo, que fica claro através da abordagem improvisada da direção e da cinematografia. Até a restauração preferiu conservar o tom verde em algumas cenas, denotando o uso de luzes fluorescentes domésticas que possuem baixo índice de fidelidade de cor. Toda a parte de comédia é tão mais bem-sucedida que salva “Um é Pouco, Dois é Bom” de uma avaliação pior e mesmo ela possui um trecho de qualidade duvidosa que era para ser uma sequência de teor psicodélico e delirante, mas só é meio entediante mesmo.
Como dito, “Um é Pouco, Dois é Bom” é mais legal do que competente. A restauração merece todos os elogios por disponibilizar novamente uma obra que não necessariamente estava perdida, mas que desde sempre foi de difícil acesso. Afinal de contas, sua primeira exibição no Olhar de Cinema foi apenas a décima sétima vez que o filme foi passado em toda sua história de 54 anos. Mesmo não sendo excelente, jamais diria que não valeu a pena.

