Confesso que não fiquei muito empolgado ao saber que a continuação de “Mad Max: Fury Road” seria uma história de origem de Furiosa. Claro, a personagem foi universalmente aclamada e uma parte integral para o sucesso do filme, já que o próprio Max foi retrabalhado em um personagem praticamente calado e que passa boa parte do tempo preso. Charlize Theron não retornar para o papel também não ajudou em criar empolgação, mesmo com a justificativa da história se passar anos antes dos eventos do quarto filme. Nada contra Anya Taylor-Joy, particularmente, talvez tenha sido mais a falta de Theron que pesou negativamente. No geral, para algo que deu tão certo contra todas as chances em 2015, imagino que a maioria queria uma continuação desses eventos em vez de voltar no tempo.
O problema central talvez esteja no simples termo: história de origem. Já falei algumas vezes por aqui como esse modelo de história fez sucesso nos Anos 2000 quando tentaram ressuscitar nomes famosos contando o que aconteceu antes de tudo ou mesmo com a febre de filmes de super-herói em que cada novo personagem tinha a origem de seus poderes apresentada junto com como eles se tornaram quem são. Parece um conceito preguiçoso. Furiosa foi bem recebida pelos fãs, então é claro que 168 milhões de dólares serão gastos para capitalizar nessa popularidade. Nove anos depois? Não parecia uma ótima idéia, mas nessa altura acho que George Miller está se divertindo ao ir contra o que parece lógico e ainda ser bem-sucedido no final.
A história volta anos no passado para quando Furiosa (Anya Taylor-Joy) era apenas uma garota. Vivendo com sua mãe e um grupo num resquício de floresta e de natureza, escondidas da selvageria brutal que o mundo se tornou, ela acaba sendo capturada por um grupo de motoqueiros que a levam de volta para seu acampamento a fim de que ela entregue onde é o oásis cheio de vida onde estava. Mas Furiosa permanece irredutível e seu destino se torna viver como prisioneira entre aqueles que a querem mal e a tratam como um animal de estimação. O que eles não sabem é que nela habita um forte sentimento de vingança, e ela fará de tudo para retornar para seu lar.
Bem, é bom admitir que estava errado. Todo esse tempo não tinha me empolgado pelo filme e, no fundo, tinha o pressentimento de que seria ao menos decente. Digamos um Nota 70 de 100 no mínimo e provavelmente um 80. Estava errado. Subestimei a história de origem e a troca de atriz e pensei que seria só boa ação como de praxe. A última parte estava certíssima, já o resto funciona melhor do que o esperado. Bem melhor. “Furiosa: A Mad Max Saga” pode ser descrito como uma obra de gênero assim como o anterior e, além disso, uma que consegue praticamente igualar seus acertos. Eu nunca esperaria isso. Tive para mim que “Mad Max: Fury Road” era um ponto fora da curva absoluto: melhor que os três anteriores, um dos melhores filmes de ação de todos os tempos e um que conseguiu ser produzido 30 anos após “Mad Max Beyond Thunderdome” receber críticas medianas. E George Miller conseguiu. Apesar de tudo, ele fez um filme à mesma altura, que perde apenas por uma pequena margem que pode ser atribuída à justamente a base rasa para a trama.
Anya Taylor-Joy traz ao papel justamente o que é pedida dela. Assim como Max em “Mad Max: Fury Road“, Furiosa também recebe o tratamento do silêncio e tem pouquíssimas falas, só não pelo mesmo motivo. Agora a personagem é possuída pelo ódio, o amargor de uma criança que nasceu num mundo apodrecido e destruído e viu tudo que ela amava ser tirado dela e por isso ela não quer falar. Ao menos é isso que extraio da performance da atriz: alguém com tanta raiva que não acha o mundo digno de suas palavras. Poderia ser também uma forma de George Miller ser econômico com atuações e dar mais espaço para a ação? Sim, mas Taylor-Joy trabalha bem com o material que tem, e isso traz uma nova dimensão à trama de “Furiosa: A Mad Max Saga” para além de história de origem, que passa a ser um tipo de coming-of age distorcido e estranho. Ainda não havia concebido a idéia de algo assim no universo “Mad Max”, algo além de ação, ação, gasolina e ação. Há uma dimensão emocional aqui, mesmo que não seja o foco. Mais do que alguém quieta, Furiosa está numa missão bem pessoal.
O mesmo não pode ser dito do outro personagem com maior destaque. Chris Hemsworth se apresenta como Dementus, líder de uma gangue com aspirações a dominar o império de Immortan Joe (Lachy Hulme). E ele só não vai tão bem quanto Anya Taylor-Joy. Sendo justo, sua interpretação segue o padrão da série de ter algum nível de caricatura, um tipo de insanidade misturada com estupidez e excentricidade que difere do louco varrido ou do louco racional. É para ser um pouco engraçado, nada que tente ser um alívio cômico ou algo parecido e há um risco inerente de não equilibrar bem as coisas e cair no ridículo. Não diria que Hemsworth peca nesse nível e, embora Dementus seja um bom personagem, sinto que há mais inconsistência na performance.
Mas essas são apenas partes adjuntas do que realmente importa em “Furiosa: A Mad Max Saga”. Não há como fugir disso, no fim, pois é uma obra de gênero, um filme de ação. E se havia algum medo de não atingir os mesmos padrões do anterior, o que é compreensível, não há por que se preocupar: George Miller entrega novamente. Visceral, se há uma forma sucinta de descrever a sinfonia de metal empoeirado e borracha queimando aqui, essa é uma ótima candidata. Tudo é tão bom quanto, se não melhor que antes, principalmente porque muitas das cenas conseguem convencer que são realizadas com efeitos práticos. E várias delas com certeza são. Não todas, claro, pois algumas coisas são impossíveis até mesmo para 168 milhões de dólares, especialmente depois de ver os bastidores de “Mad Max: Fury Road” e como ele engana o espectador sobre o que é real e o que é computadorizado e quando os dois se misturam.
O acerto aqui não se resume a uma comparação óbvia de escala, ambição e orçamento nas sequências de ação, e sim de criar uma ilusão ainda maior de que as cenas são reais, que a moto entra debaixo da roda do caminhão e se torna arte moderna de metal torcido mesmo. “Mad Max: Fury Road” é um filme maior em todos os sentidos: as cenas envolvem mais veículos, mais atores, mais coisas acontecendo ao mesmo tempo e abrindo espaço até para firulas como o guitarrista soltando fogo enquanto toca. No entanto, nada disso significa que “Furiosa: A Mad Max Saga” é menos intenso. A escala menor traz o benefício de maior foco, colocando cenas com menos elementos concorrentes e focando em como um comboio menor tenta tomar controle de um caminhão armado até os dentes; ou talvez uma simples perseguição pelo deserto, passando por dunas e terreno acidentado e tornando tudo menos óbvio que correr pela planície.
E até mesmo a estrutura muda um pouco aqui. Se desde “Mad Max 2: The Road Warrior” há um certo padrão de haver uma grande perseguição como clímax, “Furiosa: A Mad Max Saga” desvia um pouco disso. Ainda há uma extensa perseguição em algum ponto da história, mas sinto que isso foi desconstruído de certa forma e usado de uma forma menos óbvia. A ideia aqui é contar uma história mais ou menos linear e com alguma preocupação com os fatos, mais do que criar palco para longas sequências de destruição, velocidade, violência e adrenalina. Só não digo que este é exatamente tão bom quanto o anterior por uma pequena margem, pois no frigir dos ovos ambos estão no mesmo patamar de excelência.