Antes de soltar a pergunta “Por quê?”, um pouco de contexto. “The Color Purple” me chamou a atenção inicialmente porque pensei que era uma refilmagem do original, dirigido por Steven Spielberg e lançado em 1985. Quando olhei para o pôster, pensei que não poderia ser a mesma coisa, talvez uma coincidência. A linguagem visual estava muito feliz, muito gritante, com um layout dinâmico e fontes grossas num plano de fundo roxo. As três atrizes em destaque estão sorrindo ou com expressões vívidas. Bem, não é o que eu conectaria com a obra que já conhecia. Depois de uma breve confusão, vi escrito em algum lugar o slogan: “Uma abordagem ousada do amado clássico”. Aí tive minha certeza de que era a mesma história, ainda que estivesse sem entender onde a vivacidade visual se encaixava.
Acontece que em 2005 a obra original foi adaptada para um musical da Broadway, e essa versão aparentemente era um tanto mais enérgica e alegre do que o material de base. Nunca assisti nem vi nenhuma gravação da peça, então tenho apenas comentários como: “Celie se transformou numa heroína do ficção feminina inspiracional que se encontra em livrarias de aeroporto” e que “o show grosseiramente reduz a a extensa saga feminista a episódios cartunescos”. Por um lado, isso concorda com muito do que penso sobre essa adaptação; por outro, não explica muito de onde vem essa identidade visual particular. É só vendo os primeiros minutos de “The Color Purple” que é possível entender melhor essa decisão estilística.
A história, essencialmente, é a mesma. Celie (Fantasia Barrino) é uma de duas irmãs que passaram a viver com o pai depois que sua mãe faleceu. Mas o dia-a-dia em família para Celie nunca foi fácil: ela é estuprada por seu pai frequentemente e chegou a parir dois filhos seus, que foram tirados dela e mandados para outras famílias para nunca mais serem encontrados. Eventualmente, o destino a leva a ser arranjada para casar com um homem chamado Mister (Colman Domingo), mais interessado em usá-la para cuidar da casa e abusá-la do que a tratar como esposa.
Até o primeiro número musical começar, a única coisa que chama a atenção é o design de produção com um ar mais moderno. Mesmo quando o conteúdo se mantém próximo do original em termos de tom e conteúdo, quando as músicas ainda não entram em cena, há uma diferença elementar na aparência da obra. É o tipo de impressão parecida com as comparações entre cinematografia digital e analógica: normalmente há uma diferença quase inconsciente, a não ser que se esteja procurando ativamente. Nesse caso, a produção inteira parece mais polida, higienizada e nova, até mesmo quando se tenta reproduzir os cenários americanos do começo dos Anos 1900. Falta o sentimento de olhar para a imagem e sentir o cheiro de madeira envelhecida pelo sol, de quase sentir a poeira de terra batida entrando no nariz ou a humidade do barro pantanoso. Tudo que se encontra no “The Color Purple” de 1985, é claro.
Isso sem contar quando o filme se dá permissão para esquecer isso completamente e se entregar ao universo paralelo do musical, em que localidades reais não são importantes e cenários de estúdio podem entrar e sair de cena sem nenhum impacto real. Há até alguns momentos em que acontece um anacronismo estranho, principalmente no final quando certos elementos parecem novos demais para o Século 20. E isso nem é o problema real de “The Color Purple”. Até conseguiria viver com essas revisões estéticas e cores saturadas compondo uma união bizarra com o ambiente rústico, mas não consigo dizer o mesmo sobre a fusão do material dramático com números musicais.
Aqui devo novamente concordar com uma crítica da produção original de teatro de 2005: “Como todo o resto no show, os elementos musicais estão longe de uma mistura fluída, alternando trechos enfadonhos com picos enérgicos, e músicas demais parecem incompletas”. Minha interpretação seria algo assim com a adição de que não é apenas uma contradição de intensidade mas também de tom, já que os trechos narrativos são muito próximos à versão de Spielberg até serem interrompidos por algum número musical que inevitavelmente traz consigo leveza, a alegria e espetáculo de algo coreografado como um show. Além de soar incompatível com os eventos sérios e dramáticos mostrados antes, ainda parece que nenhuma música é introduzida de forma orgânica. Sempre parece que um bloco inteiro é encaixado no meio de uma outra história. As costuras são visíveis e parece que não há muito esforço em tornar “The Color Purple” um musical unificado de fato. Ou se há, ainda parece que um gênero foi aplicado à força num material já existente.
Para não parecer que a obra é um fracasso generalizado, estaria sendo injusto se não mencionasse como o elenco em sua maioria entrega o necessário para fazer as músicas serem decentes o bastante, ainda que mal encaixadas, e principalmente para o núcleo dramático ser efetivo. Interpretações fortes de Fantasia Barrino e principalmente Danielle Brooks e Colman Domingo fazem com que o drama vivido por Celie seja efetivo novamente, o que é ótimo na hora de equilibrar prós e contras e fazer com que uma parte considerável do filme funcione. O único problema é que novamente vem a pergunta “Por quê?”. Se a melhor parte é muito similar à original, parece que há pouco propósito na existência de “The Color Purple”.