Parte da experiência de assistir a “Dune: Part One” foi a incerteza de não saber se a história teria continuidade nos anos seguintes. Ainda era um ano de pandemia, no fim dela, e era uma produção de U$165 milhões que adaptava só metade do livro e acabava do nada, sem um final de fato. Foi uma aposta e tanto, e é fácil imaginar como isso poderia ter dado errado se o público tivesse ficado revoltado por não ter uma história completa e a reputação negativa se criasse no boca a boca. Ou talvez se ele simplesmente não tivesse sido muito bem recebido, algo que com certeza mataria o interesse do público e consequentemente dos estúdios, já que fazer uma nova aposta nas mãos de um novo diretor e de uma equipe criativa já seria um risco a mais. Felizmente, uma bilheteria pouco modesta e um lançamento de muito sucesso no HBO Max garantiram a existência de “Dune: Part Two” e uma conclusão adequada.
Tudo começa momentos após o encontro de Paul Atreides (Timothée Chalamet) e sua mãe Jessica (Rebecca Ferguson) com os Fremen. A filha do Imperador suspeita que Paul tenha sobrevivido ao extermínio da Casa Atreides, que teve o aval imperial para que o poder fosse retomado pela Casa Harkonnen, que tentam enfrentar a ameaça local e seus esforços para tentar impedir a colheita de Melange em Arrakis. Já vivendo entre os Fremen, Paul tenta lidar com as visões que se agravam aos poucos e com o peso da profecia de que talvez ele seja Lisan al-Gaib, a voz de outro mundo e o líder do povo para uma Guerra Santa.
Até agora, parte do meu sentimento ao final de “Dune: Part One” foi: “E daí?”. Eu não fazia ideia de para onde a história seguiria, já que não li o livro nem assisti à adaptação de David Lynch de 1984. Acabar na metade do caminho, com Paul e sua mãe encontrando os míticos Fremen pela primeira vez, trazia a promessa de algo grande por vir, por mais que sozinho não concluísse muita coisa além de apresentar o universo e estabelecer uma motivação de vingança para o protagonista. Sem saber como seria o desenvolvimento e ainda curioso, posso dizer que fui satisfeito com “Dune: Part Two”. Ele cumpre o que se propõe e traz desenvolvimento e conclusão em 167 minutos que passam ainda mais suavemente que os 155 do anterior, com um final que traz certo fechamento para a o arco inicial de Paul Atreides como o sobrevivente que se reergue mais forte. Ainda há margem para uma continuação, mas nada como o sentimento de incompletude de outrora.
“Dune: Part Two” não chega a apresentar muitas novidades ao universo para além do que foi apresentado inicialmente, sua proposta é desenvolver a base e introduzir, por exemplo, outras figuras da Casa Harkonnen, mais batalhas de grande escala e se aprofundar nas culturas Fremen e Bene Gesserit. Um ponto que reflete isso e a riqueza da obra foi notar que uma parcela considerável da inspiração de Frank Herbert na criação do universo envolve as dinâmicas políticas como uma alegoria Islâmica e a emancipação do povo árabe em um contexto de opressão geopolítica e imperialista. E isso se reflete na estética geral, talvez de tantas formas que se torna cada vez menos óbvio conforme os pontos são ligados. É um planeta desértico que contém o principal combustível para meios de transporte, os personagens usam figurinos que usam panos, túnicas e seus nomes soam árabes — Lisan al-Gaib, Muad’Dib e Usul. Talvez isso seja uma perda de magia para alguns, porém considero que seja uma parte da riqueza do folclore fictício que inevitavelmente vai espelhar algum aspecto real da história humana.
De uma forma diferente, “Dune: Part Two” reúne esses temas com fervor religioso, profecias, fanatismo e unificação de um povo e ainda abre espaço para ação, a fim de que tudo não seja uma eterna trama política feita de golpes e alianças. A obra se reequilibra com cenas de batalha que enchem os olhos de elementos acontecendo em paralelo seguindo uma lógica perceptível. É mais do que um monte de figurantes juntos ou muita computação gráfica, cada movimento e cada estratégia demonstra propósito dentro do grande contexto da batalha, assim como sequências menores não existem de graça. Apenas uma outra falham em sustentar credibilidade e parecem ridículas quando mostram soldados de equipamento, poderio bélico e mais recursos é posta para correr como vilões de desenho animado. Ao menos agora, as imensidões do deserto são mais do que cenários bonitos nas lentes de Greig Fraser e se tornam campos de batalha em que naves e estruturas urbanizadas cedem perante forças da natureza. Para além disso, a ambientação estética e a trilha sonora se mantêm eram antes, para bem ou para mal, com os exageros dos sintetizadores de Hans Zimmer e tudo mais.
Minhas críticas aqui naturalmente são diferentes dos problemas que tive com “Dune: Part One“. Se o primeiro por vezes parece gastar tempo demais introduzindo todas as casas, as relações entre elas, a importância geopolítica de Arrakis, o papel das Bene Gesserit e a apresentação de cada personagem importante, além de terminar no meio do caminho sem um final de fato, “Dune: Part Two” peca por outros motivos. Menores também, já que essa continuação se mostra ainda mais satisfatória que o primeiro por consertar todos esses problemas, ou melhor, só evitá-los porque o sacrifício já foi feito antes. Sem necessidade de introduzir muitas coisas mais, o roteiro é mais direto ao ponto e avança mais rápido pelo livro, talvez até demais que passa por certos pontos de forma um pouco superficial. Algumas resoluções são rápidas, por exemplo, e algumas mortes de personagens são tratadas quase como um tique numa lista de tarefas, sem muita cerimônia ou tempo dedicado a elas, enquanto a introdução de um território mencionado o filme todo é apenas frisada, além de ele mal ter distinção do resto dos cenários.
Ainda sinto que um elenco feito de astros — o tal ensemble cast, embora entregue atuações impecáveis como um todo de figuras novas e já recorrentes, tenha um problema pontual que me incomodou antes e chamou a atenção novamente agora de forma mais grave. Timothée Chalamet não transmite fisicalidade em sua performance. Não posso criticar a fidedignidade de seu Paul Atreides e de sua personalidade de forma alguma. Agora, mais do que nunca, há momentos de explosão e de comportamentos excepcionais, fora do habitual cotidiano humano, e mesmo assim não falha. Mas quando os personagens estão armados, lutando ou fazendo qualquer tipo de atividade essencialmente física, falta agressividade, um tipo de intensidade que torna convincente um golpe, um ferimento e até a efetividade do personagem num combate. Por sorte, não é também algo ruim a ponto de quebrar o véu da imersão, é suficiente por pouco.
No fim, “Dune: Part Two” não chega a ser perfeito, mas já consegue ser ainda melhor que o anterior. Depois de todas as várias formalidades e apresentações necessárias para introduzir o espectador ao universo, era hora de avançar a trama e mostrar onde ela pretendia chegar desde o começo. Era sabido que Paul Atreides era algum tipo de herói desde o começo. Talvez não num sentido óbvio e batido da coisa, Frank Herbert escreveu o personagem de forma que sua evolução seja pouco óbvia em sua progressão e de saltos súbitos que impressionam por se distanciarem de um desenvolvimento psicológico tradicional. É nesses pontos que o filme brilha. Não tanto por batalhas épicas que se esperariam de um Épico de Ficção Científica como esse, que tem milhões investidos apenas em elenco e uma escala ainda mais ambiciosa que a primeira parte, o que mais brilha é a consonância de temas religiosos, místicos, políticos e até bélicos. Se alguém reclamou de excesso de política em “The Phantom Menace“, por exemplo, vai encontrar algo similar e mais bem executado aqui.