Essa análise vem de uma pessoa que nunca leu o livro original. Só ouviu falar da fama ruim da adaptação de David Lynch em 1984 e chegou a comprar os primeiros livros da série. Assim, só posso falar do que ouvi previamente e do que eventualmente assisti nessa nova adaptação. Ao que parece, a tentativa de levar a série Duna para o cinema em forma de uma grande produção já começou falhando quando um projeto de Alejandro Jodorowsky adquiriu proporções incabíveis para uma realidade razoável e morreu ainda antes de sair do papel. Entra Lynch em cena para de fato entregar um produto finalizado e que não agradou muita gente nem fez muito dinheiro. E 37 anos se passam até que um projeto finalmente traz o brilho de volta aos olhos dos espectadores que já haviam desistido de uma adaptação boa. Isso é “Dune”, de Denis Villeneuve.
Arrakis é o planeta mais importante da galáxia. Suas imensidões desérticas são perigosas para qualquer forasteiro desavisado dos perigos da luz do dia e dos nativos que habitam e protegem o território, os Fremen, tornando o lugar no mínimo inóspito. No entanto, as areias também contém uma substância chamada Melange, que além de ter propriedades alucinógenas e transcendentais também permite que viagem intergaláctica aconteça, em primeiro lugar. Isso a torna a substância mais cobiçada do universo, e ela passa para as mãos da Casa Artreides após muito tempo nas mãos de sua rival, a Casa Harkonnen. Paul Artreides (Timothée Chalamet) logo se vê envolvido em atritos políticos, militares e morais quando a transição de poder se mostra menos suave do que aparentava.
Por que nunca corri atrás de “Duna” antes? Porque havia mais coisas na frente. Nunca fui o maior fissurado por ficção científica, embora sempre tenha gostado do gênero, só não a ponto de ir atrás de todas as obras clássicas da cultura popular para poder dizer que conferi todos os principais trabalhos da literatura, cinema, televisão e histórias em quadrinhos. Felizmente, nunca é tarde demais para correr atrás do prejuízo e conhecer novidades, mesmo que seja através de uma produção contemporânea em vez da fonte original. Isso me torna um conhecedor do mundo de Frank Herbert, criador do universo de Duna, por meio dessa obra de Denis Villeneuve, permitindo uma visão livre de comparativos a qualquer outro tipo de fonte. E como “Dune” se sai sob essa ótica? É um bom filme. Muito bom até, mas que não se apresenta livre de problemas perceptíveis.
Um orçamento de 165 milhões de dólares não poderia significar outra coisa além de uma produção de proporções épicas, coerentes com o aparente escopo do livro de estabelecer uma ordem política, social e cultural para uma galáxia inteira. Limitar orçamento seria matar algumas partes essenciais da trama, como “Dune” mostra já em seus primeiros momentos. Faz-se necessário retratar como o que são as tais Casas introduzidas no enredo e o que isso significa para a organização do universo apresentado, ou seja, criar uma ilustração visual que dê identidade e personalidade para essas instituições. E isso envolve a forma como as construções são erguidas, o que orna seus cômodos, que roupas as pessoas vestem e os vários porquês por trás de cada decisão. Não só atribuindo ao dinheiro o sucesso nesse quesito, pois depende mais da competências dos artistas responsáveis por essas áreas, mas não há o que criticar na criação e caracterização de mundo.
Como todo filme de substância, é mais do que a parte cosmética que torna um trabalho interessante. “Valerian and the City of a Thousand Planets” é um bom exemplo de universo interessante com boa ação e visuais cativantes, mas que falha em ter aquele quê a mais de profundidade que o distingue da maioria. Segue-se o exemplo contrário. Ainda similar no que se refere à criar imagens chamativas, pois o que seria “Dune” sem cenas no deserto infinito ao estilo de “Lawrence of Arabia“, a obra dá continuidade ao sucesso estampando-o nas diversas oportunidades de criar, seja figurinos para uma espécie humanóide de cultura guerreira de outro planeta ou para o povo nativo de um planeta praticamente desolado. Eis um filme bonito de assistir, feito pelas mãos de um diretor que é proficiente na construção de histórias visualmente ricas e que também mostra conteúdo por trás de toda a sua perfumaria, por assim dizer. Se for para continuar nas comparações, “Dune” está mais para “Arrival” do que a obra de Luc Besson citada anteriormente.
A seguir por sua reputação, poder-se-ia dizer que “Duna” é o tipo de obra digna de uma trilogia ou até de uma saga no estilo de “The Lord of the Rings”. Pelo tamanho do universo e a quantidade de informação, há mais que o bastante para mais filmes. Por isso não é surpresa que no cinema esse filme se apresente como “Dune: Part One” e depois disso, com o passar do tempo, que uma continuação seria necessária. As 2h35 não são suficientes para abordar o primeiro livro inteiro. Só as primeiras cenas já indicam que não seria possível atolar tanto conteúdo na duração de um longa-metragem: há muita atenção para detalhe. Desnecessário? Imagino que não, só não é possível evitar aqui que a quantidade de informação sobre o universo acabe pesando negativamente contra o ritmo da obra. Demora um bom tempo até que o filme engrene em um passo mais fácil de acompanhar, com cerca de um terço da obra se delongando demais em seu prólogo expositivo sobre quem são os personagens importantes, o que é uma Casa, qual a política vigente no universo, o que é a ordem Bene Gesserit e os superpoderes que aparecem às vezes. O que não faltam são frases explicando o que são as coisas. Bem diretas ao ponto.
“Dune” é um filme gigante. Gigante em orçamento e em todos os outros sentidos. Parece até um filme de Wes Anderson que contrata atores grandes para papéis de 2 minutos de tela, em que todos os minimamente importantes são interpretados por alguém famoso. Jason Momoa interpreta um guerreiro habilidoso que não faz muito mais do que aparecer em três ou quatro cenas, uma delas sendo de ação; já Zendaya, que apareceu muito nos materiais promocionais, tem um quarto do tempo de tela dele. É estranho, mas como o dinheiro é infinito e a aposta é grande, Denis Villeneuve não se refreia em ostentar quão grande seu filme é. Sua intenção é mostrar a magnitude da obra e a toda oportunidade ele tenta impressionar o espectador mostrando quão gigante é sua obra, fascinado com a própria grandeza. Uma hora isso cansa, especialmente no começo expositivo, e até que “Dune” comece a de fato avançar no enredo e pare de dar uma aula sobre seu universo, diversificando um pouco a narrativa com cenas mais agitadas e até uma quantia boa de ação. E então o filme acaba. Como esperado, a história completa não se encontra aqui e se faz um trabalho de direção para que exista algum sentimento de final iminente, ainda que não forte a ponto de eclipsar a noção de que foram 2h35 de um grande prólogo instrutivo.