“Crash” é facilmente um dos filmes mais doentios que já vi na vida. E sempre que me perguntam se é bom, eu digo que sim. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas isso sempre leva a mais perguntas sobre o que tudo se trata e é aí que começa a ficar complicado explicar o conteúdo da história e porque eu, ou qualquer pessoa, acharia isso bom de alguma forma. É nessas horas que o desconforto toma conta e a outra pessoa normalmente muda de idéia sobre assistir e talvez ainda ache que você tem algum problema por gostar do que é apresentado.
A história acompanha James Ballard (James Spader), um diretor de televisão, acaba se envolvendo em um grave acidente de carro. Ele bate de frente com outro veículo e o motorista é catapultado para o assento do passageiro ao seu lado. Apenas ele morre, enquanto James acaba no hospital com pinos, talas, bandagens e agulhas com soro na veia até que ele se recupere. Mas algo mudou depois do acidente. Ele se vê atraído de volta aos automóveis e a dirigir em pouco tempo, eventualmente conhecendo outras pessoas que passaram pelo mesmo e que possuem um certo estilo de vida envolvendo perigo e sexo numa relação bem próxima.
Quão possível ou provável é sentir atração sexual numa batida de carro? Normalmente as pessoas estão machucadas ou mortas demais para sentir algo do gênero. O que acontece normalmente e o que torna mais fácil a associação é a adrenalina, a sensação de perigo, a quase morte, aquilo que todas as histórias de ação e aventura usam para unir um par romântico e que, na verdade, faz todo o sentido. Experiências como essa, que levam a pessoa a um patamar de emoção dificilmente alcançado num processo normal de flerte e sedução, tornam mais fácil o acesso à essência básica do ser humano como ser vivo reprodutor, de sentir atração bruta e imediata por alguém que talvez já despertasse algum tipo de desejo. Então não, não é de graça que as mulheres se apaixonam por James Bond depois de quase serem carbonizadas numa explosão, a situação faz quase o trabalho todo por ele.
“Crash”, por mais estranho que seja, é um filme que explora o sentimento. Ou seria a sensação? O evento que mexe com a estrutura de uma pessoa e ativa como um gatilho um escape instantâneo da previsibilidade do cotidiano, de saber o que vai acontecer na sequência porque é o que acontece todos os dias e provavelmente vai acontecer por muitos outros ainda. De repente a volta para casa do trabalho é interrompida por um caminhão que fura o cruzamento e destrói o lado do passageiro do carro, arremessando a lataria metros longe. O corpo libera adrenalina e vem uma sensação de enjôo com dor suprimida, mas não inexistente, o gosto de sangue na boca e uma anestesia geral distorcendo a noção de tempo. Como uma droga de efeito rápido, é uma passagem para um novo estado de existência que não se encontra sempre. E então começa a tentativa de recapturar o raio dentro da garrafa. “Crash” é, na verdade, bem mais simples em essência do que a forma que escolhe para traduzir isso.
Pensando em termos de estrutura, muito de “Crash” é dificilmente aplicável a qualquer modelo familiar. É uma abordagem quase documental, sobre acompanhar pessoas em atividades diárias não relacionadas e como elas acabam caindo num submundo abastecido de sexo, fetiches muito específicos e acidentes de carro. A jornada dos protagonistas é um tipo de descida pelo inferno, conhecendo dos os círculos e as criaturas que lá habitam confirme eles descobrem algo sobre si mesmos no processo, mas nada tão claro que transforme a odisséia em algo transformativo de vida. Novamente, é um tipo de cinema curioso, que segue pessoas até os lugares estranhos que elas frequentam e expõe o que acontece ali sem buscar uma moral para a história toda. Numa descrição objetiva, são fetichistas que sentem tesão por cicatrizes, fraturas, deformidades e a onipresença do carro como elemento sexual. Por outro lado, uma descrição semântica mostra a busca do desejo que nasce através de uma associação inusitada.
Assim como o pico de emoção num momento de perigo faz a mocinha se entregar ao herói, acontece o mesmo em “Crash”. É tão esquisito quanto genial como David Cronenberg consegue reproduzir essa associação improvável entre sinapses que normalmente não se comunicam, construções mentais se encontrando pela primeira vez e renovando quão novos os estímulos soam. E o mais incrível é que tudo funciona tão bem. É assistir a tudo que foi descrito e, mesmo assim, poder dizer que valeu a pena porque de alguma forma o diretor vai tão longe em sua ousadia que consegue ser convincente em mostrar por que “Crash” vale a pena. Apesar da abordagem solta, documental e da pura estranheza dos eventos escolhidos, tudo funciona como um produto imprevisível, incomum e que dificilmente daria certo de acordo com o senso comum. Bem, o padrão nunca foi o forte de Cronenberg, então não é tão surpreendente que ele tenha tanto sucesso com uma idéia tão contra-mão.
Como descrever um filme em que o assunto principal é bater carros e transar? É difícil sem parecer maluco ou algum tipo de delinquente com fetiches esquisitos. Seria difícil também escrever um roteiro bem-sucedido sobre o assunto e ainda manter algum tipo de coesão básica e razoável para que não seja um produto trash fetichista e exploratório. Bem, David Cronenberg consegue. E o faz fazendo de “Crash” um de seus melhores trabalhos, um mergulho profundo em uma parte tão obscura da vivência humana que para a grande maioria das pessoas é até inimaginável. Que bom que algumas pessoas possuem coragem e, dentre essas, um artista como Cronenberg.