Quem nunca foi exposto a alguma arte que faça pensar: “O que diabos esse cara tinha na cabeça para fazer isso? Não deve ser muito certo da cabeça”. E é claro que isso pega carona com a noção do senso comum de que todo artista é um pouco maluco e incompreensível, por isso suas vidas pessoais são caóticas ao passo que sua produção oferece apenas um vislumbre dos processos que acontecem ali. No fim, continua um enigma e as pessoas acabam apenas decidindo se elas gostam do produto ou não, se o mistério do artista é cativante ou desprezível. No caso de David Bowie, a maioria parece concordar que o Camaleão do Rock é mais interessante do que não, por isso tanto furor dos fãs no culto à sua personalidade e por isso alguém como Brett Morgen decide abraçar um projeto de documentário dedicado, intimista e expositivo como esse. Mais do que uma carta de amor de um fã, “Moonage Daydream” pinta um retrato que jamais pode ser culpado por superficialidade.
Para quem já viu “Cobain: Montage of Heck“, sabe mais ou menos o que esperar. É do mesmo diretor, roteirista e editor, que embarca em uma proposta similar de escolher um artista e dissecá-lo ao longo de algumas horas de ilustrações, vídeos de arquivo, clipes de áudio, recriações de materiais, músicas, videoclipes e qualquer tipo de material que contribuir. É de se pensar como ele conseguiu tanta coisa, quem ele roubou, onde ele invadiu ou quanto tempo de pesquisa ele gastou para chegar nisso tudo. Enfim, alguém tinha de fazer esse trabalho pelo bem dos fãs e para que, quem sabe, alguém pudesse extrair algo de produtivo nesse exame do fenômeno David Bowie.
Vale ressaltar que não é exatamente o mesmo modelo, abordagem e formato de “Cobain: Montage of Heck“. Embora use várias das mesmas ferramentas, a narrativa é bastante diferente e, bem, faz todo o sentido já que são pessoas diferentes no centro da obra. E mesmo se não fosse por essa razão, “Moonage Daydream” emprega outras idéias e artifícios que diferem bastante dos diários de Kurt Cobain e das reconstruções dos manuscritos das canções, por exemplo. Bowie viveu por muito mais tempo, consequentemente a quantidade de material é incomparavelmente maior. São alguns poucos anos explosivos de revolução cultural e musical, de influenciar uma nova onda inteira de jovens, contra uma carreira de mais de 50 anos que já passou por muitos lugares e alguns outros. Não só isso, Bowie sempre foi mais sofisticado e flamboyant do que bruto, sujo, bonito e bagaceiro.
“Moonage Daydream” aproveita essa maior extensão para explorar todas as fases de um artista que foi pioneiro em algo que é moda hoje entre artistas do Pop: eras, conceitos, figurinos, identidades visuais e tudo que fortalecer a preparação para um novo álbum. E ele teve mais do que algumas. De seu começo modesto até seu estouro no fim dos Anos 60 e subsequentes álbuns de enorme sucesso, com Ziggy Stardust e as Aranhas de Marte, o músico adotou personas e mudou seu som e até ele próprio, a forma como ele se comunicava em entrevista e também suas crenças. Tudo em constante renovação e não de graça, mas porque fazia parte do processo de evolução expressiva, era uma necessidade que vai além da mercadológica e está mais para algo que vem de dentro. Se isso parece maluco, é porque realmente é. Se o texto está explicando esse processo mal, aí já não é culpa de Bowie.
Tudo faz um pouco mais de sentido assistindo a “Moonage Daydream”. Para além da narrativa linear recontando a vida dele ano a ano, álbum a álbum, esse filme faz entender quem era a pessoa por trás da obra e como ele funcionava, no que ele acreditava e o que era arte para ele. Talvez não seja tanta surpresa, ou não deveria ser, mas ouvir Bowie falar sobre o que ele faz é inspirador. É tocante e instigador, desperta o pensamento sobre o que se faz como artista e como lidar consigo mesmo e os diversos conflitos internos que ardem dentro de cada artista que se questiona todos os dias sobre a validade e a qualidade do trabalho, sobre a sensatez e o acerto de cada decisão, sobre estar perdendo tempo ou talvez estar fazendo a coisa mais certa que já fez em toda sua vida.
Se existe algo concreto como a definição de um verdadeiro artista — e tal noção já é elusiva o bastante porque definir o que é meramente um artista já é combustível para conversas boêmias e infinitas — acredito que David Bowie é um perfeito exemplo de pessoa que consegue preencher bem os requisitos, sejam eles quais forem. Ele era uma pessoa autêntica, se o termo agradar mais, que fazia o que achava que devia e muitas vezes o que precisava porque criar e produzir eram quase necessidades biológicas. Se isso não acontecesse, seria pedir por uma artéria estourar no pescoço por pura repressão de uma pulsão que merecia vazão. Ao menos na apresentação de Brett Morgen, é possível enxergar Bowie como um modelo de artista que, para mim, seria o ideal: condensa suas experiências, ressignificar sofrimento e aliviar dores, compartilhar parte de sua experiência limitada como ser humano da forma que julga apropriada.
E isso é preciso para ele. Não é querer escrever um bom álbum ou compor uma música incrível porque se almeja fama e uma recepção positiva, um reconhecimento e respeito do terceiro; também não é ignorar esses fatos e dizer que não são importantes ou agradáveis de alguma forma, muito menos fechar-se numa bolha de solipsismo em que a arte é o que é e que ninguém mais tem acesso ou compreensão. Bowie não passou por fases porque achou que seria uma manobra publicitária comerciável ou pintou quadros porque seria bom para sua imagem no Instagram de artista que aspira a uma reputação perante seus conhecidos. “Uau, ele não só é fotógrafo, diretor, roteirista, editor de vídeos, diretor de arte, figurinista mas também é artista plástico! Quantos talentos, é de se impressionar que todos caibam na biografia do perfil!”
Mais do que tudo isso, “Moonage Daydream” é um convite a refletir sobre a própria condição, caso o espectador se considere ou tenha aspirações a ser artista. É ver como alguém bem-sucedido trilhou seu caminho para além dos fatos concretos de um artigo na Wikipédia, é acompanhar o funcionamento básico desse ser humano e ponderar se sua própria postura é satisfatória aos seus próprios olhos ou se o caminho que se percorre tem as regras ditadas por qualquer outra pessoa que não seja você; se o que se considera “identidade artística” de fato é isso ou é uma limitação sua com uma maquiagem racionalizada, se você faz o que queria estar fazendo e se não, por quê?