Até hoje é comum ver as pessoas falando de dois filmes brasileiros como referências de qualidade. Sempre os mesmos dois. O primeiro é “Cidade de Deus“, claro, até hoje a resposta automática de muitos que nem pensam para responder e nem precisam, na verdade, pois é uma escolha justíssima para melhor filme nacional. A segunda menção normalmente é “Central do Brasil”. Indicado a dois Oscars, Melhor Atriz e Melhor Filme Estrangeiro, o filme se tornou notório com a esperança dos brasileiros de ganhar não um, mas dois prêmios. Seria o momento em que uma atriz brasileira, ninguém menos que Fernanda Montenegro, ganharia um Oscar? A expectativa foi gigante.
Isadora (Fernanda Montenegro) passa seus dias e ganha a vida escrevendo cartas para os que não conseguem escrever e postar sozinhos. Eles a visitam na Central do Brasil, ditam o conteúdo da carta, ela escreve, recebe o dinheiro e diz que vai levar no correio. Seu negócio parece justo e de coração, mas a senhora não é um poço de boas intenções como pode aparentar. Um de seus clientes é uma moça e seu filho querendo fazer contato com o pai maltrapilho da criança, que sumiu sem mais. Isadora decide por não enviar a carta, mas quando a mãe do garoto morre, ela se vê envolvida demais para virar as costas.
Assistir a “Central do Brasil” era um problema até um tempo atrás. Exceto por exibições em festivais ou cinematecas que haviam uma cópia do rolo, a distribuição de mídia física era precária, com versões adulteradas para encaixar o quadro no formato mais quadrado das televisões de tubo e com o preço nas alturas no mercado de usados. Ou seja, uma parcela considerável da imagem em widescreen se perdia. Isso mudou quando há alguns anos foi anunciada uma remasterização e um lançamento pela primeira vez em Blu Ray. Ótima notícia. Finalmente pude conferir a obra para além dos trechos perdidos na televisão, já que perdi uma sessão no Festival do Rio quando houve. O problema é que prometi para um amigo que veria junto com ele e isso demorou quase 3 anos. Mas aconteceu, para a felicidade de nós dois, que gostamos tanto quanto achamos que gostaríamos. Realmente é um filme brasileiro de respeito e digno de sua reputação.
É engraçado, de certa forma, ver “Central do Brasil” e pensar em que tipo de imagem ele transmite sobre o Brasil para o resto do mundo. Em um nível superficial, há metrôs superlotados, gente se atropelando, sendo atropelada e baleada no centro da cidade como se fosse um dia normal na cidade maravilhosa de São Sebastião do Rio de Janeiro. Tudo isso acontece já nos primeiros minutos de filme e, sim, embora tudo isso aconteça na cidade e sejam eventos plausíveis, ainda preciso encontrar alguém que me conte sobre quantos tirosouviu ressoar em seu trajeto do McDonald’s até de volta para o escritório. Afirmação relativista? Com certeza. Há tanto mais que acontece e nunca é divulgado que é fácil se fechar numa bolha e achar que nada ocorre fora dela. Por outro lado, narrativamente falando, o começo da história soa como um curso intensivo de ambientação carioca com licença poética para alguns exageros. Alguns relevantes para o enredo, outros nem tanto.
Engraçado porque a história sequer se trata da tal Central do Brasil no centro do Rio de Janeiro. É o começo de um caminho que vai aos cantos do Brasil que fazem até mesmo o espectador brasileiro se perguntar onde diabos os personagens estão. E então, alguém de fora pode achar que o Brasil é um caos urbano perigosamente perto da Índia ou um sertão desolado sem um traço da sociedade moderna pós-Século 19. Não que seja relevante o que um estrangeiro ache do país, porém o charme de “Central do Brasil” resta em parte nesse retrato concentrado de pedaços de brasilidades. Exagerado ou não, há um fundo de verdade na representação que mais serve de catalisador para a história ascender a um novo cenário: literal e sentimental, um ambiente inédito com os protagonistas nos estados emocionais necessários para o desenvolvimento dramático devido.
O filme muda. Demonstrações iniciais de caráter são postas em xeque, questionadas e pressionadas para que se desenvolvam para um lado ou para outro; caindo ainda mais na espiral de seus egos cegos ou expandindo sua percepção para incluir novas informações e, com sorte, participar de algum tipo de transformação. Nada de uma intensidade melodramática, em que as pessoas enxergam novos valores no horizonte e os adotam a tempo do final do filme, sendo indivíduos totalmente novos e mudados. A qualidade da sensatez se encontra aqui, sem deixar que a hipérbole inicial domine também a progressão dramática dos personagens. “Central do Brasil” acaba por ser a história de um reencontro de valores básicos que às vezes se perdem conforme o próprio sujeito se perde na turbulência de sua vida pessoal. Eis que chega um momento em que este não se reconhece mais depois de se deixar levar nessa corrente de mudanças e conseqüências.
E o que dizer disso sem mencionar Fernanda Montenegro? É complicado. Ela é a figura central, a referência moral e o principal meio de comunicação dos conflitos emocionais apresentados. Ela é uma senhora extraordinária de seu jeito: escreve cartas para gente sem instrução. Um serviço incomum, no mínimo, e que fica ainda pior quando, na verdade, ela não posta as cartas como prometido, tornando o ofício em algo como uma maquiagem para enganação. No entanto, há algo mais na personagem que se descobre conforme essa fachada cai e a mulher se vê numa posição em que é obrigada a agir como um ser humano passando por experiências genuinamente humanas. A obra funciona por causa de Montenegro, sem ela não seria mais do que um filme de estrada vazio e sem alma. Enredo por enredo, não há sustentação suficiente sem um personagem injetando a vida para tornar seus momentos cativantes de alguma forma. Só por isso, imagino que esteja respondida a grande questão sobre a intriga de Gwyneth Paltrow ter vencido o Oscar de Melhor Atriz na competição daquele ano. E ela não está sozinha, claro. A escolha de Vinícius de Oliveira, engraxate descoberto pelo diretor Walter Salles, traz um toque de imperfeição que acaba por ser pertinente. Mesmo com os momentos que deixam dúvida se sua atuação é boa ou não, há um quê de fidedignidade em sua pessoa que desvia para longe qualquer dúvida.
Passando para um patamar mais geral, talvez “Central do Brasil” seja até mesmo um exame da consciência brasileira coletiva, uma que tende ao egocentrismo suposta e auto-declaradamente esperto porque consegue algo de forma fácil, o tal jeitinho brasileiro que por vezes tenta mascarar a malandragem que prejudica o próximo. Felizmente para a protagonista, ela ainda está em tempo de reconhecer quão longe foi e compensar um pouco seu carma negativo acumulado. Como dito, a sensatez evita que tal redenção seja um perdão automático de todos os feitos anteriores, estando mais para algo positivo entre tantos outros negativos, um primeiro passo. Quem dera tal revisionismo pessoal fosse regra, não exceção.