Havia comentado antes que “The Purple Rose of Cairo” era diferente daquilo que veio a se esperar de Woody Allen. Bem, isso foi antes de assistir a “Match Point”. Diferente nem chega a descrever, é uma variação de gênero que foge completamente das comédias de humor leve e personagens comicamente desajustados que fizeram a fama do cineasta, partindo agora para uma maior seriedade no campo do suspense e da ausência de humor quase completa, abrindo espaço no máximo para o drama. Dificilmente posso ser considerado o fã mais assíduo do diretor, daqueles que viram todos seus filmes mais de uma vez, então foi uma surpresa encontrar em seu trabalho um item tão diferente daquilo a que estou acostumado. Só não seria surpresa descobrir que já havia um lançamento antes desse com a mesma divergência de gênero e tom, dada a extensa carreira de décadas.
Chris Wilton (Jonathan Rhys-Meyers) decide abandonar sua carreira profissional no Tênis para seguir um ramo menos tenso e se mudar da Irlanda para Londres e dar aulas em um clube de classe alta. Com um pagamento menor, a dinâmica muda e Chris se vê recomeçando a vida num pequeno apartamento. Ele logo faz amizade com um de seus alunos bem de vida, Tom Hewett (Matthew Goode), e também com sua irmã Chloe (Emily Mortimer), com quem ele passa a se encontrar com frequência. Tudo vai bem até que Chris conhece Nola Rice (Scarlett Johannson), uma jovem atriz de poucas perspectivas, de beleza estonteante e comprometida com ninguém menos que seu futuro cunhado Tom.
Não posso ressaltar menos como fui surpreendido com “Match Point”. Até onde eu sabia, era um filme clássico de Woody Allen ou algo próximo disso envolvendo romances turbulentos e aventuras sexuais. E é exatamente isso por um bom tempo, na maior parte dele. Os detalhes se encontram na essência cínica e austera por trás de temas recorrentes da carreira do diretor. É fácil assistir e não achar nada diferente em particular a princípio. Foi o que aconteceu comigo. Entrei na experiência sem pensar nada de mais ou achar que haveria motivo para achar que esse longa seria diferente de alguma forma, então fui surpreendido ao encontrar Allen em um estado de espírito mais sério, trazendo uma visão mais ácida sobre as mesmas desventuras em que seus personagens se envolvem. É como encontrar o mesmo modelo de história em gêneros diferentes: um conto policial pode ter desfechos bem diferentes se for um Noir em vez de uma produção moderna de Ação.
Mais do que isso, o roteiro é bem sucedido nessa transição entre gêneros. Uma coisa seria apenas mudar, eu talvez escreveria sobre como fiquei surpreso de encontrar um trabalho do tipo nas mãos do diretor; outra seria mudar sem pecar na qualidade. Sendo justo, “Match Point” não é um ponto alto na carreira de Woody Allen, ao contrário do que ele mesmo diz ao afirmar que é o melhor filme que já fez na vida. Não colocaria entre os melhores de sua carreira, o que não significa que, por si, não seja muito bom. A idéia central evoca temas para além das fantasias mundanas de possuir aquilo que é proibido e inacessível, tal como desejar a mulher de um amigo porque ela é atraente e em especial porque está fora de alcance, trabalha também os tema de interação entre classes sociais bastante distantes e o potencial disso de influenciar a moral única do indivíduo. Até que ponto vai a ganância e quão rígidos são os valores de uma pessoa frente à tentações grandes.
Para além do roteiro, tudo funciona por conta de um elenco que compartilha os laços necessários para que as relações construídas tenham relevância e as decisões tenham peso. Se não houvesse um sentimento de companheirismo entre Tom e Chris, não haveria impacto em vê-lo interessado por Nola, afinal eles não são tão amigos assim e provavelmente Chris não se sentiria tão mal em desejar a moça. O que se vê na interpretação de Jonathan Rhys Meyers, por outro lado, é um rapaz que aparenta gostar de seu amigo rico, mas não consegue evitar se sentir atraído pela sua namorada interpretada por Scarlett Johansson. Apenas faz sentido. Esse é o nível de química entre os dois. Quase parece lógico que eles tenham algo juntos. Enquanto isso, a garota interessada em Chris, interpretada por Emily Mortimer, está tão apaixonada e envolvida que não consegue evitar parecer otária no meio de toda a situação. Além do mais, há uma certa nuance na atuação de Rhys Meyers que evita um julgamento superficial de sua pessoa. Nunca dá para dizer o que move ele exatamente, se é mera ambição, ego masculino, traços antissociais ou até uma insegurança oculta. Ele é um rapaz estranho, e dos que despertam medo, não menos.
Só não posso elogiar de forma alguma a cinematografia de Remi Adefarasin. Não faz serviço algum ao ambiente londrino onde a história se passa, nem mesmo aproveitando alguns cenários extravagantes como bairros erguidos sob arquitetura Georgiana ou mansões afastadas do centro urbano, onde mora a família Hewett. E não se trata de uma questão de enquadramento, composição e direção de cena, é a estética da imagem que se mostra muito pouco atraente, lavada e sem inspiração alguma que evoque algum sentimento específico a fim de contribuir para a narrativa. “Match Point” é visualmente sem sal, por consequência. Assistir é passar duas horas sem se impressionar uma vez com a fotografia. E nem dá para dizer que Londres tem um clima nublado eterno e que não há como ficar bonito. Com expectativas bem alinhadas quanto ao que é possível naquele cenário e clima, ainda é possível extrair resultados bem melhores que os vistos aqui.
“Match Point” não é o melhor do diretor, com certeza, porém é o mais distinto dentre seus trabalhos a que assisti. De longe. Até alguns anos atrás, diria que Woody Allen dirigir um suspense seria absurdo, considerando seu histórico e suas obras mais famosas. Eis o resultado: uma história que começa como muitas outras e não indica, a princípio, o caminho obscuro que tomará; um triângulo amoroso, um imbróglio romântico com uma entonação soturna debaixo da superfície. A experiência com certeza se beneficia de não saber muito sobre a obra, as reviravoltas são notavelmente mais poderosas quando se espera algo leve e típico do cineasta. Pensando agora, essa própria análise dar informações vai contra a idéia da surpresa, então fica aqui meu desejo que a leitura tenha sido após assistir.