O primeiro incentivo que tive para ver “Great Expectations” foi um livro sobre montagem cinematográfica da década de 50, escrito por Karel Reisz. Nele, uma das primeiras cenas é mencionada como referência na construção de um clima soturno e tenso, com a câmera e a montagem sugerindo algo de um lugar e surpreendendo o espectador com algo vindo de outro, um clássico direcionamento de atenção. Fora isso, nunca havia ouvido alguém comentar sobre essa adaptação do livro clássico de Charles Dickens dirigida por David Lean. Sempre era “Lawrence of Arabia” ou, quando se falava no começo de carreira, “Brief Encounter“. Não sendo o maior fã de Dickens, acabei nem procurando saber sobre adaptações de seus trabalhos e esbarrei nessa quase por acidente.
Philip Pirrip (Anthony Wager) é um rapazinho curioso. Por causa de seu nome complexo, prefere ser chamado apenas de Pip. Ele é um órfão, mora com a irmã e o cunhado numa humilde casa na região pacata e calma de Kent, na Inglaterra, vivendo uma rotina despreocupada até ter idade para ser aprendiz de ferreiro. As coisas passam a mudar quando um homem fugido da cadeia cruza seu caminho e, pouco tempo depois, o garoto é convidado a passar os dias na casa de uma senhora rica da cidade, onde conhece Estella, uma garota que povoa os sonhos do rapaz a despeito de sua frieza e crueldade. Os anos passam e, agora um rapaz crescido, Pip (John Mills) recebe um convite de um benfeitor desconhecido para se mudar para Londres e receber uma grande quantia em dinheiro para se tornar um homem de sofisticação.
Não costumo citar outros críticos nas análise, mas esse caso é excepcional. Um breve texto, escrito para a Variety na época de lançamento, traz uma frase certeira sobre o que senti assistindo a “Great Expectations”: “Apenas Dickensianos radicais vão encontrar problemas nessa adaptação, e, paradoxalmente, só amantes de Dickens vão extrair prazer máximo do filme”. Como não sou fanático por Charles Dickens, me senti um pouco fora do clube por não ter referência para avaliar o que se faz de certo e de errado, sem poder analisar o nível de fidelidade e amar ou criticar a adaptação realizada. Resta avaliar o que o filme traz como obra original e independente do livro.
O que me trouxe aqui, além da menção no livro de montagem, foi a presença de David Lean na direção, um dos diretores de que mais gosto e menos busco conhecer por razões desconhecidas. Novamente se encontra um altíssimo nível de sofisticação visual, imagens belas como as dos melhores artistas a trabalhar com o preto e branco. E, assim, novamente é uma situação curiosa porque Lean não trabalhou como diretor de fotografia em nenhum de seus projetos. Mesmo assim, é difícil acreditar que seja mera coincidência que os visuais sempre sejam um fortíssimo foco de qualidade. Que isso seja atribuído à sua liderança de uma equipe centrada em trazer as páginas do livro à vida usando imagens então. Não se limitando à direção de fotografia ou à direção de Lean, outros elementos se exaltam na construção dos grande momentos da obra; o figurino ligado ao tema de classe social da trama, o design de produção preenchendo o set com mais detalhes que os olhos podem processar em poucos segundos, uma sinfonia de tons de cinza e trechos em penumbra e escuridão. Visualmente, é uma maravilha como qualquer outro grande trabalho da carreira do diretor.
Em termos de conteúdo, já não é tão positivo. A história começa muito bem, aproximando-se muito de ser o excelente filme de sua reputação e, inclusive, trazendo logo de início a sequência mencionada no livro. “Great Expectations” introduz a história do jovem Pip interpretado por Anthony Wager numa performance infantil admirável. É visível o ingrediente essencial das histórias bem-sucedidas sobre crianças, a sensibilidade que evita que as coisas pareçam bestas e simplificadas, aproveitando, por sua vez, as particularidades dessa fase para construir a história. A inocência e a simplicidade inerentes daquela realidade usados para alimentar cenas que não funcionariam com adultos. Essa ainda é a parte boa.
Piora um pouco quando ocorre a transição para a fase adulta de Pip, que já não é tão mais interessante ou peculiar quanto antes. Seja lá para onde a história apontava antes, parecia bem mais promissora do que onde eventualmente acaba. É aqui que sinto que o trecho da crítica da Variety se aplica melhor, sobre os fãs de Dickens poderem encontrar problemas na adaptação ou aproveitarem melhor o que já existe. Fica a impressão de que a fase adulta é a que mais sofre cortes e é mais abreviado, resumindo-se em grande parte a um comentário frouxo sobre classes sociais, arrogância e um romance que nunca soa bem desenvolvido. “Great Expectations” perde muito de sua força por parecer muito simplificado e até um pouco forçado, considerando a forma como tudo se ajusta no final das contas. Certamente o livro deve dar algumas voltas mais, explica e desenvolve melhor antes de terminar mais ou menos no mesmo ponto. Até mesmo o personagem de Pip, agora interpretado por um John Mills muito velho para o papel, não tem a mesma presença do ator jovem. O mesmo acontece com Estella, um personagem que como criança é bem mais interessante do que a mesma personalidade transposta numa adulta.
A surpresa foi ver que a reputação desse filme é bem grande. Ou melhor, que as avaliações são muito positivas, ostentando títulos como melhor adaptação de Dickens no cinema, um dos melhores trabalhos de David Lean e até quinto melhor filme britânico de todos os tempos. Falhei em enxergar toda essa grandiosidade. Há sinais dela ao longo da obra, momentos incríveis como os primeiros atos envolvendo a infância de Pip e outros de imagens fortes que ficam marcadas automaticamente, cenas que despertam a curiosidade sobre a fonte de onde saíram todos seus detalhes e sinalizam a genialidade do autor por trás da história. Infelizmente, a história como um todo não reflete a qualidade desses trechos impressionantes e a obra perde sua força no que parece ser simplificações de um livro bem mais extenso.