Não vou negar que meu único interesse em “Crash” era descobrir se era tão terrível assim. Talvez não terrível, mas desmerecedor mesmo do Oscar de Melhor Filme em 2006, pois quase universalmente marca presença nas listas de piores vencedores do prêmio. Alguns itens comuns dessas listas não foram tão terríveis assim, como “The English Patient“, outros são difíceis de defender, como “Shakespeare in Love‘, e outros são tão antigos que se tornam complicados de aproveitar atualmente, como “The Broadway Melody” e “Cimarron”. Já o filme em questão é apenas fraco. Tem estrelas de peso, um tema importante no centro de tudo, algumas atuações boas e mesmo assim não chega lá. Quando o próprio diretor fala que seu trabalho não merecia ter ganhado a estatueta da noite, há algo errado.
As vidas de vários cidadãos da cidade de Los Angeles se entrelaçam em eventos frutos do acaso. Tudo começa com um acidente de carro: um policial, dois carros e um corpo descoberto fora da estrada. Trinta e seis horas de algumas pessoas e destinos colidindo. Um Procurador Estadual enfrenta enfrenta problemas de mídia quando um policial negro é morto por outro policial branco justo quando seu carro é roubado por uma dupla de negros. Em outro lugar, um latino que troca fechaduras entra em atrito com um homem persa que o contrata. E ainda, um policial preconceituoso abusa de sua posição de poder contra membros da comunidade negra da cidade. É um terror étnico improvável com toques de melodrama.
Já deve estar claro o bastante que o assunto principal de “Crash” é relações raciais em Los Angeles. Um assunto moderno, ou melhor, que nunca fica velho porque permanece em discussão sob formas diferentes ao longo das décadas. É apenas deprimente pensar que alguns pontos não se resolvam e os mesmos problemas se repitam, como se a humanidade não aprendesse com seus erros — sintam o clichê emanando dessa frase. Isso poderia ser um ponto positivo por tornar esse longa-metragem relevante ainda em 2020. Com certeza não toca num ponto ultrapassado e muito de sua moral, por assim dizer, ainda pode ser aplicada. Se qualidade fosse definida pela escolha de assunto, estaria tudo bem, porém a crítica e o público foram ríspidos porque apenas abordar um tema não constitui mérito artístico. Há um longo caminho até trabalhar bem um conceito, seja lá qual for.
Também existe uma grande diferença entre trabalhar bem, fazer um trabalho decente e trabalhar mal. Nada como uma execução infeliz para matar o potencial impacto de uma tema e fazer exatamente o oposto, mostrar o lado ruim e expor o argumento ao ridículo. “Crash” por vezes consegue exatamente isso. Algumas críticas recaem sobre o retrato estereotipado dos personagens. Há um policial cheio de preconceitos que aproveita sua relativa impunidade para praticar agressões, dois negros que roubam carros e cometem crimes diversos, uma madame branca que sequer tem motivos para desgostar dos latinos com quem convive, dois negros de alta sociedade que sofrem injustiças pela cor da pele e outros exemplos tão clássicos quanto. E é claro que o latino dirige uma van branca quadrada e trabalha com manutenção. Que dúvida.
Por um lado, há alguma defesa para esses retratos. Não é como se houvesse poucos policiais que praticam brutalidade. O caso de George Floyd é apenas um dos mais recentes. Também é comum encontrar latinos trabalhando em construção civil, manutenção, pintura e mecânica. Não faltam madames que contratam empregadas latinas pelo salário mais baixo e aproveitam para abusar delas por sua condição vulnerável. Seria errado dizer que isso não existe. A questão é que “Crash” erra fundamentalmente na eventual subversão desses estereótipos, o que poderia constituir uma forma de desenvolvimento de personagem para além da representação inicial. Quando isso falha, a caricatura nunca transcende sua superficialidade ou o faz de forma que a mudança ainda é percebida como superficial.
Esse é o maior problema aqui. Paul Haggis chegou a comentar em entrevista que os estereótipos foram intencionais e que criticá-los não faz sentido porque a idéia era desconstruí-los na seqüência. Acontece que o próximo passo do processo também é falho, as transformações desses personagens são tão clichês quanto suas fases iniciais. Segue-se o caminho da prostituta de coração enorme, do vilão que muda de idéia na última hora e salva o dia, do pobre que descobre ser herdeiro do trono e da redenção universal dos pecadores. Há uma ou duas surpresas genuínas na história, mas diria que até essas são estragadas por artifícios cafonas ao máximo da parte da direção de Haggis. A conclusão inteira do arco do latino das fechaduras é estragada por uma execução tão melodramática e adocicada que chega a arder na garganta.
A premissa também não é das melhores. Aliás, a princípio não é problemática. “Amores Perros” e “Babel” ambos usam a mesma idéia de pessoas completamente diferentes cruzarem caminhos em um evento fatídico que os une e são mais bem-sucedidos em criar histórias paralelas a partir disso. “Crash” vai um pouco mais longe nesse conceito e cruza os caminhos vezes demais, de forma que parece que só existem 10 pessoas na cidade, vários deles de minorias étnicas e a maioria com preconceitos pesados. Tudo bem um personagem esbarrar no outro, mas ele encontrar outro personagem desse mesmo grupo e ter uma interação etnicamente relevante é passar do ponto. Enfim, até parece que o filme é uma porcaria absoluta, mas ainda sobram alguns pontos positivos perdidos num elenco de peso e em cenas que de fato conseguem usar o acaso para impacto dramático. A maior parte não consegue, por isso o filme cai por terra num patamar de de evidente mediocridade. Se por acaso eu tivesse acompanhado a temporada de premiações em 2006, nunca teria achado esse filme um concorrente razoável e muito menos um possível vencedor. É de se imaginar a decepção generalizada no final da noite.