A história de “Babel” é sobre destino; ou as peculiaridades bizarras do acaso. Em diferentes cantos do mundo, pessoas tocam suas vidas e seguem suas próprias agendas. No Marrocos, um casal tenta aproveitar a ocasião tranquila da viagem para discutir algumas questões tensas de seu relacionamento. Ainda lá, uma pobre família camponesa compra um rifle de caça para evitar que os chacais matem as cabras. Uma adolescente muda no Japão tenta se ajustar a um mundo pouco acolhedor ao mesmo tempo que depende de sua relação distante com seu pai. Enquanto isso, duas crianças nos Estados Unidos são levadas pela babá para o casamento do irmão dela no México, sem saber dos possíveis problemas que poderia encontrar. Os caminhos de todas essas pessoas se conectam sem que tenham a mínima suspeita.
A história da Torre de Babel fala de uma empreitada ambiciosa. Os descendentes do grande dilúvio se reúnem sob um mesmo propósito de construir uma edificação tão grande e colossal que seria uma ponte entre a Terra e o Céu. Todos falavam a mesma língua e seguiam o mesmo objetivo, construindo a maior das construções até que Deus percebeu o que estava acontecendo e decidiu fazer algo a respeito. Novos idiomas são criados e, sem entender uns aos outros, a construção para. O grande povo é dispersado pelo planeta e assim se dá o início das civilizações como são conhecidas hoje.
“Babel” não se trata de uma adaptação bíblica e está longe de tal propósito. No entanto, não há como negar que o título e seu plano de fundo bíblico fazem uma referência concreta aos temas da obra e ajudam a esclarecer como todas essas histórias geograficamente isoladas estão conectadas. Considerar a antítese de isolamento e união, por exemplo, mostra como as pessoas escolhidas como protagonistas são totalmente diferentes e, ao mesmo tempo, parte de uma mesma espécie. Em teoria, todos possuem as características que os categorizam como similares, mas as diferenças de uma cultura latino-americana em ocasião festiva, entregue à êxtase da comida, da bebida e da felicidade compartilhada são completamente evidentes diante da realidade de uma família de cinco pessoas que vivem no meio de uma montanha marroquina. Não precisa ser o clássico e batido exemplo da civilização ocidental globalizada contra um país subdesenvolvido africano para existir um contraste.
Culturalmente, há um abismo de disparidades entre México e Marrocos. Não num sentido de melhor ou pior, mas de costumes e modo de abordar situações. Considerando relações diplomáticas entre países, num exemplo mais plástico, pode-se notar um exemplo claro de como as pessoas nem sempre estão falando a mesma língua. Talvez o mesmo idioma, mas sem conseguir compreender o outro. As palavras são compreendidas e, mesmo assim, as pessoas não se entendem. Uma não alcança fundo o bastante para absorver o mínimo da realidade da outra pessoa, contentando-se com julgar friamente de acordo com seus próprios valores e preceitos. Assim, “Babel” contempla a comunicação em uma esfera mais primordial que a das palavras fabricadas pelo homem para traduzir aquilo que se passa em sua cabeça e em seu coração. Ou seja, daria para dizer que o conteúdo se perde na tradução a despeito dos envolvidos compartilharem qualidades como fisionomia e constituição biológica. Sentimentos e a capacidade de abraçar os de outra pessoa, a empatia, são uma comodidade rara entre os personagens aqui.
Outros indícios disso podem ser vistos mais claramente quando as situações são comparadas diretamente ou quando há transições entre ambientes. Tudo que poderia ser encontrado de alegre num casamento mexicano morre tão rapidamente quanto se aproxima das estações da polícia da fronteira. A própria forma como os marroquinos civilizados tratam seus conterrâneos do interior estabelece um contraste e tanto onde, em teoria, não deveria haver nenhum. É justamente o contrário que acontece, embora não vá entrar nos porquês mais detalhadamente. Basta dizer que relações mais frutíferas surgem nos lugares em que menos se espera, como uma planta que desafia todas as expectativas e floresce como se estivesse num ambiente preparado. Indo e voltando constantemente, fragmentando e intercalando suas pequenas histórias, “Babel” evidencia ainda mais os contrastes quando relevante e, mais importante, os traços de um roteiro que sabe o momento perfeito de cortar a ação quando os ânimos estão em alta para retomar algo que ficou para trás. A lógica Hitchcockiana “enquanto isso de volta no rancho” aparece em ótima forma.
Mas nem sempre é assim. Entre histórias tematicamente conectadas e uma narrativa que faz malabares com as histórias, existem detalhes não tão atraentes na mistura. Há um arco inteiro falho, menos sutil em sua execução e um tanto mais deslocado dos outros, algo também relacionado a outro problema de “Babel”. Em primeiro lugar, a própria escolha do arco como um todo já diz muito se o caminho da falta de comunicação entre similares for escolhido. Eis uma adolescente surda-muda que ainda não experimentou um décimo daquilo que a vida tem para oferecer. Ela sempre se sentiu deslocada do resto da sociedade e incompreendida pelo pai, de quem sempre foi mais distante comparado à mãe. Basta uma simples provocação para que ela passe a lutar contra várias dessas tendências que ela tomava como verdade. Faz sentido e é condizente com a proposta? Sim. De forma orgânica? Definitivamente não.
Além do mais, o destaque do resto das histórias não acontece apenas em termos de qualidade, mas também narrativamente. Se fosse apenas uma questão de geografia, com o Japão estando longe de todos os outros locais, minha crítica seria estúpida e vergonhosa. Entretanto, acredito que o roteiro vai longe demais em sua proposta de querer unir todas estas histórias para além do caráter temático. Não bastando conectar tudo de forma que uma mesma discussão se desenvolva em lugares diferentes com pessoas diferentes, tenta-se fazer as pontes serem concretas e literais. Com certeza isso era algo de que “Babel” não precisava, um tipo de exposição totalmente gratuita que até chega a parecer autocongratulatória pelos roteiristas conseguirem unir tudo tão engenhosamente.
Devo dizer que gostei mais de “Babel” nos momentos imediatos após o final do filme. Quando os créditos estavam rolando, ainda pensava naquilo que a história havia tentado dizer com sua estruturação peculiar e não linear. E conforme algumas questões foram se esclarecendo, outras mais negativas e incômodas começaram a se fazer lembradas, como detalhes que seriam melhor inexistentes ou esquecidos. Mesmo com um elenco claramente empenhado na transmissão da humanidade tão palpável para a audiência quanto estranha para alguns personagens, existem defeitos difíceis de serem ignorados. Um deles sendo justamente a falta de fé — ou uma megalomania na forma de estabelecer o maior número de conexões possível — do próprio roteirista para com sua história.