“Memórias de Ontem” é o segundo filme dirigido por Isao Takahata para o Estúdio Ghibli, seguindo “Túmulo dos Vagalumes” em 1988. Seguindo uma linha parecida de pouca fantasia na história, toma como base um mangá homônimo de 1982 e foi um sucesso surpresa na bilheteria, dado seus temas maduros e pouco acessíveis para o público. Talvez fosse o começo do que eventualmente se tornou fala comum sobre animações serem mais do que bobeira infantil e poderem ser apreciadas por adultos? É um passo na mesma direção do trabalho anterior de Takahata nesse sentido. Diferente dele, no entanto, esse é um filme mais consistente, sem nenhum momento crítico fraturando a narrativa e prejudicando a efetividade do drama.
As férias de Taeko Okajima estão chegando novamente. Ela decide sair de Tóquio e se afastar um pouco da vida da cidade grande em um vilarejo no interior, visitando parentes distantes pela segunda vez para ajudar na colheita, mudar um pouco o ritmo das coisas e apenas fazer algo diferente da rotina na cidade. Durante a viagem, Taeko se pega relembrando de sua infância espontaneamente e até mais do que gostaria, freqüentemente recontando as histórias para seus amigos e percebendo aos poucos como a lembrança se encaixa no presente. As vidas diferentes de uma mesma pessoa em seus 10 e 27 anos se revelam em férias que deveriam ser apenas uma distração da monotonia urbana.
Imagino que a animação seja uma forma de contornar problemas ou impossibilidades do mundo real. Escolher desenhar seu universo, seu personagem, a casa onde ele mora e os lugares que visita é ter liberdade total e absoluta para representar as idéias de seu criador. Criaturas da fantasia podem passar a existir sem destoar do resto do cenário, tão irreais quanto o personagem que era para ser um humano normal e também pode ser diferente de uma ilustração realista. Não é novidade apontar que o estilo de ilustração japonesa tem os olhos grandes e as expressões exageradas, seja para efeito cômico ou para intensificar a ação. E onde “Memórias de Ontem” se encaixa nessas idéias? É um drama com os dois pés bem firmados no chão. Sem bruxas, castelos no céu, foguetes, espíritos da floresta nem nada para apimentar a vida banal com algo diferente.
Pois é. Curioso ver que “Memórias de Ontem” conta uma história de vida comum. Seu ato mais ousado é usar o flashback para voltar a quando a protagonista tinha 10 anos. Só isso. Os cenários se limitam a um vilarejo rural, à casa e à escola de Taeko. O mais próximo de uma cena de ação é andar de trem ou de carro. Acredito que até seria menos trabalhoso produzir essa história com atores do que desenhar milhares de quadros de cenas de passeio e diálogo. Uma escolha curiosa que está mais para um capricho estético inofensivo, sem atrapalhar nem acrescentar nada em particular à narrativa. Resta analisar a obra pela história que conta e como ela se posiciona com os outros lançamentos do Estúdio Ghibli.
Isso é relevante porque recentemente tenho considerado o legado do estúdio, seu impacto e sua fantasia bem-sucedida como uma face moderna de fábulas, histórias com significado e propósito por trás de metáforas narrativas e estilizações visuais chamativas. “Memórias de Ontem” não tem nada dessa tendência para o extraordinário e mesmo assim não deve nada a outros títulos populares do estúdio, cumpre sua proposta de contar uma boa história sem deixar o escopo menos ambicioso entrar no caminho. Falar de uma garota em meio a uma crise dos 20 e poucos anos só tem a dizer sobre a natureza da história sem inferir sobre sua competência. Ser um filme inteligente tanto o aproxima dos grandes quanto ser um drama cotidiano não o afasta da aventura de Chihiro num mundo de espíritos e monstros. O passo em direção à excelência se dá na forma como o roteiro encontra equilíbrio entre as duas fases da vida e não prioriza relações concretas entre as transições. Não quer dizer que não existam, só não exclamam sua função imediatamente, passando a fazer sentido conforme se conhece mais da protagonista.
E são sempre elos sutis. Primeiro o espectador se maravilha com a jovem Taeko, a menininha meiga, carismática e amável, impossível de criticar e querida a ponto de superar sua versão adulta como personagem. Depois, no retorno à vida adulta, essa impressão se transforma e se reorganiza em uma nova composição similar à de antes, mas singular de seu próprio jeito. “Memórias de Ontem” captura a elusiva qualidade da divergência da mesma pessoa em momentos diferentes da vida, dois personagens e uma mesma pessoa.
Falando em fazer sentido no final, fica o aviso de que a conclusão acontece durante os créditos. Pois é, as últimas cenas desenrolam com o texto na frente. Decisão esquisita, no mínimo, que pode enganar também pelo teor surreal do trecho, o qual destoa um pouco do resto e pode sugerir que não tem conexão. É aí que mora o perigo, pois até isso faz parte dos últimos estágios do desenvolvimento interno da protagonista, com o passado retornando para tentar mudar o presente; como um sonho que não deixa de ser relevante porque o significado não se apresenta já de manhã.
Além do ritmo um tanto devagar, posso reclamar de pouco de “Memórias de Ontem”. A experiência não é das mais fluídas e às vezes parece que o tempo demora muito para passar. Tanto que vi o filme em duas sessões porque comecei a assistir muito tarde e a perder a batalha contra as pálpebras depois da primeira hora. Esse é um dos casos bons de encarar completamente descansado e atento, até porque sua narrativa sustentada pelas sutilezas entre períodos de vida demanda um pouco mais de esforço do que uma conexão explícita. De resto, devo apontar uma ninharia incômoda na escolha das marcas de expressão no rosto de Taeko: ela parece uma snehora de meia idade quando deveria ter 27 anos! Nunca pensei que fosse reclamar de duas linhas em uma animação e aqui estou eu. Já a música só é lembrada justamente por não ser marcante como em outros trabalhos do estúdio. Não surpreendentemente, é Katz Hoshi em vez de Joe Hisaishi na trilha sonora.