“Tiger King” é insano. Sem mais. Aqui estão algumas coisas encontradas nessa minissérie: criadores de tigres, tigres, leões, ligres, leopardos, linces, crocodilos, rivalidades, assassinatos, conspirações, oportunistas, mentirosos, drogados, mutilados e desvairados. E isso é só o começo. Grandes obras foram feitas com muito menos do que isso, mas nem tudo segue o preceito de que menos é mais, não as pessoas retratadas aqui. Sim, pessoas, nada de ficção e personagens coloridos, como costumam ser chamados aqueles cheios de características extravagantes e que por vezes soam falsos porque ninguém é tão peculiar assim. Acontece que alguns indivíduos parecem fazer o esforço para se destacar do resto. E há quem diga que os loucos se entendem. O elo entre eles é nada menos que tigres.
A primeira coisa em que pensei quando vi que “Tiger King” lançou e as pessoas falavam dele foi “Don’t Fuck with Cats“. Parecia que o Netflix havia se empolgado na onda de documentários de crime envolvendo felinos e decidido lançar uma continuação espiritual, uma série relacionada para reunir novamente os amantes de gatos e animais em um documentário para deixá-los revoltados, curiosos e sedentos. Por um lado, querendo saber mais sobre os animaizinhos e ver mais tigres bebês tomando mamadeira e miando como um gatinho doméstico tentando imitar um tigre adulto; por outro, indignados com o tratamento desses animais pelas pessoas que os criam, usam e se aproveitam da inocência dos bichos; e ainda, curiosos para ver onde que a história sobre um criadores de tigres nos Estados Unidos vai parar. Será mais uma história sobre maus-tratos contra animais? Outro capítulo da história de um homem que mata filhotes de gato e coloca na internet? Não, com certeza há mais do que isso ali. O subtítulo já indica: “Murder, Mayhem and Madness”.
“Tiger King” acompanha de perto a história de um criador de tigres em particular: Joseph Schreibvogel ou Joseph Allen Maldonado-Passage, mais conhecido como Joe Exotic. Ele gosta de tigres, muito. Dono de um zoológico particular no Oklahoma, cuida e convive com dezenas de felinos grandes e outros animais exóticos junto de uma equipe que o acompanha há anos. Nada de especial, exceto pelo fato de ele odiar e ser odiado por Carole Baskin, dona de um santuário para felinos resgatados. Ela discorda das práticas de Joe e o acusa de explorar os animais contra seu bem-estar. Já ele acha que ela é uma vagabunda mentirosa que não tem mais o que fazer além de causar problemas e colocar a fúria dos grupos de proteção aos animais atrás dele.
Bem, ainda não se vê assassinato, caos e loucura. Ao mesmo tempo que não quero contar absolutamente nada sobre “Tiger King” e deixar os detalhes deliciosos para o espectador descobrir sozinho, também seria um desserviço ao leitor encher o balão da empolgação e não contar nada. Pois bem, Joe Exotic é o exemplo perfeito do tipo de coisa insana neste seriado que é menos sobre defesa dos direitos de animais do que todo o resto. Ele é o cara que usa um mullet descolorido e franja em 2020 e acha que isso é seu charme. Se não for suficiente, seu bigode ferradura e o coldre com revólver carregado reafirmam sua masculinidade como um legítimo redneck que passa todo dia no Walmart local para comprar munição e atirar nas coisas do meio do mato. As várias tatuagens, piercings, brincos e roupas bregas são um bônus e, finalmente, o grande homem tem que ter armas grandes, carros grandes e animais de estimação grandes. É o Macho com “M” maiúsculo, certo? Certo?
O texto pode não fazer jus à realidade e realmente evocar algum estereótipo de caipira alfa. Bem, aí vem o resto da história e mostra que o sujeito tem algumas qualidades impossíveis de adivinhar até para quem vê uma foto dele. E quanto à liberdade de cada um ser o que quiser, se vestir do jeito que quiser e sentir orgulho disso? É um país livre, mas que seja dado um voto de confiança quando digo que Joe Exotic vai surpreender. Não cheguei nem perto de dizer tudo que há sobre esse cara, há tanto mais para fazer o espectador pensar primeiro que redneck não descreve totalmente, depois que a nova informação não faz sentido e que os limites do brega são desafiados em um videoclipe de música country sobre tigres. Não é surpresa que já rolou a idéia de transformar sua vida em um Reality Show, a quantidade de coisas fora do comum que não englobam a criar tigres como profissão é mais que suficiente para fazer qualquer um ficar com o cérebro torcido.
Subestimei “Tiger King” assim como subestimei “Don’t Fuck With Cats“, achando que fosse mais uma história centrada nos animais, naqueles que os amam e naqueles que nem tanto. Acho que subestimei até mais, dei pouco crédito e encontrei algo até mais estupidamente bizarro, de fazer questionar como aquilo tudo é possível. A sequência dos três primeiros episódios é como uma minhoquinha gorda na ponta de um óbvio anzol que a audiência prefere ignorar depois de ver como o petisco é apetitoso. São os três capítulos focados em três das personalidades proeminentes do seriado: o curioso Joe Exotic, sua arqui-inimiga Carole Baskin e um popular criador de felinos, além de comentarista recorrente, Doc Antle. Até pode parecer exagero dedicar quase metade da minissérie para apresentar personagens, porém este é um caso especial com exemplos que, novamente, são bons demais para serem de verdade. E são elas mesmas abrindo o jogo sobre si, expondo suas personas curiosas orgulhosamente… com a ajuda de outras pessoas preenchendo as lacunas mais controversas, é claro.
E como é impressionante encontrar tanta coisa estranha num seriado que parecia advogar sobre direitos dos animais e expor os abusos que sofrem em zoológicos, a despeito de todo o tratamento cuidadoso que parecem ter. Nada disso. Se há algo impressionante aqui não são os tigres. Eles tocarem eventualmente o coração dos espectadores mais sensíveis a fofura é apenas um alívio da sujeira sob a superfície de cada discurso. O objetivo de “Tiger King” provavelmente não era mostrar as facetas complexas do ser humano especificamente, descascar a personalidade de alguém a fim de expor como pode ser a fonte de tantas coisas contraditórias, belas e nefastas ao mesmo tempo. É isso que acontece, curiosamente, quando o mesmo personagem que parecia ser tão correto e se importar com os animais passa a mostrar um lado negativamente incomum, sem charme algum para defender; e então o mesmo personagem parece não ser tão horrível mais adiante quando o ranking moral é atualizado e os crimes dos outros se sobressaem muito.
A tendência é ir de mal a pior até que se torna obrigatório nivelar por baixo. Salvam-se os coadjuvantes, aqueles que queriam dedicar suas vidas para dar uma mais digna aos animais e conseguiram se manter livres de intrigas. Isso apenas para deixar claro que nem todos os retratados em “Tiger King” são indecentes. A grande maioria impressiona conforme mostra que vai além de nutrir ódio voluntariamente ou de ter alguma característica negativa num grande conjunto, é gente que ganhou — e ainda ganha — a vida mentindo, de forma que chega num ponto impossível de distinguir quem é confiável de quem não é. A verdade parece puxar mais para o lado do interesse em nutrir egos ou tentar melhorar a imagem pública com mais mentiras e omissões estratégicas para tirar o foco das partes deselegantes. De todas as possibilidades, como tanta gente ruim foi se reunir no mesmo círculo profissional de criadores de tigres? Essa é a grande pergunta.
Joe Exotic por si já seria material o bastante para preencher uma minissérie sozinho, isso fica claro uma vez que se bota os olhos nele. E é claro que algum espertinho da indústria pensou nisso ao anunciar uma nova minissérie da CBS focada em Exotic estrelando Nicolas Cage. Qual a razão disso, sendo que ele bastante explorado aqui? Dinheiro, é claro, a mesma coisa que incentivou o canal Investigation Discovery a produzir outra série focada em Carole Baskin e no desaparecimento de seu marido, além de um especial de TV de uma hora lançado pela TMZ. A grande verdade é que todos querem pegar carona no sucesso do seriado mais popular do Netflix em sua primeira semana, com 34 milhões de espectadores. Deu sorte quem teve a idéia original de “Tiger King” e saiu na frente dessa corrida, aproveitando o conteúdo fantástico e aliando isso a uma narrativa engajante. Restou para o resto das produtoras se mexerem com um trabalho invejável e um tanto inusitado mostrando a maravilha da possibilidade de encontrar uma história insana dessa num zoológico.