“Molly’s Game” foi um dos que deixei passar na temporada do Oscar 2018. Que grande burrada. Indicado ao prêmio de Melhor Roteiro, o longa também marcou a estréia de Aaron Sorkin como diretor depois de dezenas de créditos como roteirista e da criação de alguns seriados de sucesso. Deveria ter dado uma chance no lançamento, até porque um amigo meu me recomendou e falou de uma cena que nunca saiu de minha cabeça desde que ele a citou. Depois de toda a enrolação, pude finalmente ver por que tal cena foi tão marcante para ele na época e depois para mim, sem contar o resto de uma história que fez menos barulho do que deveria, estando entre os melhores do ano, olhando agora para trás.
Molly Bloom (Jessica Chastain) carrega um pesado fardo desde jovem, quando era treinada por seu pai para ser esquiadora olímpica num regime intenso que jamais permitia qualquer tipo de erro. Mas nem o melhor dos treinos pode evitar o acaso e a garota sofre um acidente terrível que a desqualifica de participar da equipe nacional nas Olimpíadas. Isso a leva a querer tirar um ano de folga e tentar alguma coisa diferente em Los Angeles trabalhando como garçonete e outros trabalhos até se encontrar no curioso submundo do pôquer, onde acha uma forma de ganhar a vida organizando as maiores mesas do país e vai muito bem até se tornar um alvo das autoridades.
Não é de se surpreender que o roteiro de “Molly’s Game” seja bom. Mais freqüentemente do que não, aprecio a qualidade dos trabalhos de Aaron Sorkin na criação de histórias que fazem meu estilo: verbosas. Não no sentido negativo de usar mais palavras que o necessário, falar coisas inúteis e desviar do assunto e prejudicar a comunicação daquilo que importa, mas de ter bastante diálogo. Assim, é pouca surpresa que sua grande estréia no show business tenha sido com uma peça de teatro, com ele mesmo admitindo que seus roteiros costumam passar um tanto do número de páginas costumeiro porque tem mais diálogo e isso toma mais espaço na formatação da página. De qualquer forma, o importante é que ele é bom no que faz a despeito de todos os princípios de roteiro que tentam induzir o escritor a criar cenas com mais matéria visual, mais ação e movimento porque, afinal, essa é a vantagem do formato sobre outros.
Sorkin demonstra novamente como ter movimento ou não é regra, ou é uma falha pessoal contornada com maior esmero em outras áreas, como o diálogo. Com certeza não é determinante de nada porque “Molly’s Game” é um excelente filme que fala muito. Usando narração pesada, a história começa já com a protagonista contextualizando o espectador sobre os eventos do segundo parágrafo até os mínimos detalhes e continuando mais ou menos no mesmo ritmo até o final, com ela usando suas palavras quando necessário sem nunca ser invasiva. Essa é uma crítica que não posso fazer, pois mesmo freqüente nunca parece que a narração está constatando o óbvio e fazendo uma função que não deveria ser sua. Trata-se de uma saída para um roteiro que essencialmente não tem tanta ação assim.
Parte do que faz uma boa direção é ilustrar o ponto de vista de seu protagonista e fazer com que a câmera trabalhe em função disso. Isso significa que cortar para o verde vivo da mesa de pôquer com as cartas rasgando o musgo conforme são distribuídas nem sempre é uma alternativa viável. Molly Bloom não joga, fica sempre na lateral das mesas de olho no que acontece a fim de evitar problemas nos seus jogos. Ficar com a câmera parada enquanto ela observa seria chato, usar outras imagens seria visual sem propósito, portanto a solução às vezes é colocar palavras vindas do céu para apimentar ou explicar melhor algumas coisas que seriam bem difíceis de ilustrar do modo tradicional.
“Molly’s Game” mostra-se sensível às necessidades específicas da narrativa ao acelerar ou reduzir sua velocidade e sua taxa de informação. Alguns momentos específicos pedem por uma explicação a mais e não há problema. Às vezes parece demais e fica difícil acompanhar qual combinação de carteado traz tal resultado para um personagem, que precisava de uma outra coisa e decide mudar sua tática na esperança de que seu oponente tenha mais uma combinação nova. É uma das poucas coisas que posso pensar em criticar de fato, sem chegar a pegar muito pesado porque mesmo perdendo esse tipo de detalhe a coesão geral não sofre. A outra seria a direção de Aaron Sorkin, que impressiona e às vezes nem tanto, sendo passível de crítica em momentos de falta de sutileza ou de uma execução visual convencional demais, mostrando exatamente o que se espera ver — ocasionalmente acompanhado da narração.
Todavia, não diria que Sorkin carece de habilidade como diretor e que deveria se ater aos roteiros. Longe de mim dizer o que cada um deve fazer, até porque seus esforços em “Molly’s Game” são muito mais louváveis do que reprováveis e mostram apenas algumas arestas a serem polidas ao invés de inaptidão explícita. Sua outra tarefa como diretor, inclusive, demonstra sua competência nas interpretações de Jessica Chastain e Idris Elba como as duas forças motrizes de uma trama que jamais se apresenta bidimensionalmente, com objetivos pontuais abordados como se não houvesse nada mais no mundo. Molly Bloom, por exemplo, não decide organizar as mesas porque quer ser rica e provar um ponto, há uma série de casualidades e implicações que tornam o trajeto desde o início mais complexo do que mudança de status social e financeiro. Eventualmente o ciclo se fecha bem na cena marcante para meu amigo.
“Molly’s Game” é bem melhor do que eu esperava e é uma grata surpresa por trazer um roteirista com vários bons trabalhos bons debaixo do braço agora assumindo um papel mais próximo do que nunca de seu enredo e de seus personagens. Agora há a possibilidade de criar as situações, moldar a narrativa e ainda não depender da compreensão de outra pessoa na hora de traduzir as idéias para a prática. Só posso imaginar que o ótimo trabalho com o elenco, que rendeu a Chastain uma indicação ao Globo de Ouro, seja fruto da maior facilidade de concretizar a visão ao mantê-la unificada em mais fases do processo criativo e de produção.