“Yesterday” tem uma idéia muito boa. Não é sempre que saem filmes sobre os “Beatles”, direta ou indiretamente, então é mais ou menos um evento quando isso acontece. É apenas coincidência que 2019 e 2020 tenham lançamentos, o primeiro com o filme de Danny Boyle usando a banda como um tipo de MacGuffin e o outro com o documentário a lançar, “The Beatles – Get Back”. Com isso, devo admitir que o trailer me deixou com uma expectativa positiva, parecia ser uma criativa mistura de Beatles com “Groundhog Day” ou “What Women Want”, histórias em que o mundo muda de uma hora para outra e apenas o protagonista percebe o que há de diferente. Infelizmente, a execução não chega lá exatamente.
Os últimos tempos têm sido desmotivadores para Jack Malik (Himesh Patel). Músico autoral, sua vida profissional não tem tido muitos atrativos e apenas a presença de Ellie Appleton (Lily James) como sua única fã e agente tem o motivado a continuar. Uma participação num festival parecer ser o que ele precisava, mas quando quase ninguém vai, o rapaz volta a ficar desacreditado com seu futuro na música. Isso muda quando um apagão geral no planeta faz com que algumas coisas mudem. Todos esquecem de quem são os “Beatles”, eles são apagados da história como se nunca tivessem existido com uma exceção: Jack ainda lembra quem eles são e encontra sucesso quando passa a tocar suas músicas para um mundo que nunca as ouviu.
Isso é um tanto esperto. Várias vezes comentei com um amigo se um dia ainda haverá alguma banda tão grande quanto os “Beatles”, com o mesmo impacto ridiculamente grande de transformar toda a música popular e dar início a uma revolução musical-criativa, uma era de ouro para grupos marcarem presença no panteão das grandes bandas de todos os tempos. E se eles nunca tivessem existido? Se os Anos 60 tivessem acontecido e bandas como “The Rolling Stones” e “The Beach Boys” tivessem feito carreira normalmente, enquanto o Fab Four sequer tivessem pensado em nascer. E se eles aparecessem em pleno final dos Anos 2010, será que seriam relevantes? Essas são as perguntas que já de início deixam o espectador ansioso. É mais que o bastante para deixar alguém que gosta da banda interessado em um mundo sem ela.
Mas e então? “Yesterday” começa mal ao introduzir Himesh Patel como seu protagonista. No começo nem é tão ruim, ele é totalmente atrapalhado e não parece estar com a cabeça rosqueada direito; depois passa a confirmar que a primeira impressão estranha era apenas indicativa da absoluta falta de carisma do ator. Sim, a idéia é mostrar que ele está numa situação muito maior do que pode lidar e isso se traduz em um comportamento estranho, de alguém perdido e desnorteado. Isso poderia abrir caminho para um ator melhor extrair comédia da situação e tornar o personagem mais amável. Não é isso que se encontra.
Pensando numa alternativa rapidamente, Dev Patel seria um ator melhor para o papel. É difícil pensar na importância do protagonista especificamente quando a maior parte dos filmes faz um trabalho decente o bastante, é apenas em situações como essa que fica claro como os livros de dramaturgia e roteiro têm razão em reforçar esse ponto. Ele é realmente uma peça-chave que faz muito para arruinar uma obra quando não é bem trabalhado, seja na escrita ou na interpretação. “Yesterday” peca no segundo caso. É um personagem bem escrito para seu contexto sem um ator elucidando essa qualidade. A escolha atual apenas me fez perceber o personagem como um cara extremamente chato e até tapado, que não consegue ser engraçado ou cativante em suas cenas e apenas deixa o espectador imaginando quão melhor a história seria com alguém mais forte. Em vez de pensar que o personagem foi inocentemente cego todo o tempo, mais parece que ele foi apenas um grande idiota.
Seria ainda mais fácil perdoar o ator principal fraco se o meio da história não se mostrasse limitado ao tratar algumas questões de forma dicotômica, criando oposições entre amor verdadeiro e carreira, vida de realizações e sucesso exorbitante, visão artística e viabilidade comercial. Há formas e formas de lidar com isso. É possível tratar de amor e de sonhos profissionais sem que seja de uma forma burra e simplista, vide “La La Land“.
“Yesterday” também demonstra não saber como concluir sua história oferecendo um final insatisfatório. Nunca se explica por que apenas algumas coisas deixaram de existir, o que torna certas cenas do começo bem esquisitas por induzirem um pensamento dedutivo sem lógica. Por exemplo, sabe-se inicialmente que os “Beatles” não existem mais e mais tarde que Coca-Cola também não. Por quê? Eles inventaram a Coca por acaso? Qual a conexão? E ainda resta o sentimento de que o filme não tem final, que o roteirista teve uma idéia boa, começou a escrever e não soube como finalizar. Uma possibilidade seria fazer como vários outros filmes em que o protagonista tenta bater a cabeça no poste de novo, jogar o secador na banheira ou aprender uma lição para fazer o mundo retornar ao normal. Não que isso seja a melhor idéia, mas já seria alguma coisa.
No entanto, vale apontar que “Yesterday” não é feito só de fracassos. No final das contas, ainda é um filme interessante que consegue conduzir sua premissa curiosa até certo ponto em que não consegue mais e se contenta com uma conclusão morna, sendo brando na escolha de palavras. A história ainda diverte bastante na maior parte do tempo e raramente peca violentamente contra o axioma do entretenimento, então mesmo com todos os defeitos nunca acusaria a obra de ser chata ou entediante. Triste pensar que uma obra desperdiça seu potencial visto em pontos altos como os “Beatles” renascendo no Século 21 e a reimaginação de suas canções nas mãos de alguém que tenta lembrar das letras de cabeça