Lembro de estar bem empolgado para ver “Fury” no cinema em 2014. Quase todos os dias abria o Google para ver se estava passando em algum cinema da cidade até que finalmente chegou o dia e eu vi que passaria naquele mesmo dia, logo após a faculdade. Maravilha, finalmente veria “Fúria”, o novo filme de guerra com Brad Pitt, exceto que era “Fúria”, filme de ação com Nicolas Cage. E assim nasceu mais uma invenção da casa de idéias das distribuidoras brasileiras: “Corações de Ferro”. Depois de mais de cinco anos se recuperando de tal trapaça, finalmente pude descobrir uma obra bastante competente de um diretor que nos próximos anos se saiu não tão bem.
Chega o último ano da Segunda Guerra Mundial. Os soldados estão cansados e só querem voltar para casa de uma vez, deixar a Europa para trás e retomar as vidas que abandonaram anos antes. Ninguém agüenta mais. No entanto, ainda há luta pela frente enquanto o Terceiro Reich não cai. Don “Wardaddy” Collier (Brad Pitt) comanda o blindado Fury e embarca numa missão para proteger uma posição estratégica para o exército enquanto treina um novato que chega para substituir seu parceiro morto.
O mais esquisito de ver “Fury” depois de todo esse tempo é perceber que David Ayer é o mesmo que dirigiu “Suicide Squad” em 2016, ou seja, um soco na barriga de sua reputação por ter se tornado praticamente uma referência de filme de super-herói ruim atual. Seu próximo trabalho foi “Bright”, ou seja, um outro soco na barriga por ser outra referência de produção original Netflix horrível. Por que contratam esse cara? A resposta se encontra aqui, uma produção bem recebida pela crítica com bons resultados na bilheteria. É o pacote completo, ser bem conceituado e ainda ter sucesso comercial para agradar os executivos e poder continuar trabalhando por ser considerado um diretor rentável. Isso responde a pergunta sobre ele ter feito dois filmes ruins, mas não a de como ele fez um muito bom antes desses.
Tudo bem, não é como se “Fury” fosse genial ou um destaque em todo o gênero Guerra. Ainda há uma distância considerável até chegar em “Apocalypse Now” e “The Thin Red Line”, então o choque não é impossível de conceber porque a diferença entre o pior e o melhor do diretor é menor. Ela ainda é grande. “Bright” é pateticamente fraco, construído a partir de um roteiro que junta conceitos batidos e nada faz para os tornar mais interessantes do que são no senso comum, sem nem mesmo uma boa direção para amenizar esses problemas com os benefícios de uma execução básica, ou seja, ação e movimento empolgando um pouco o espectador. É aí que fica mais estranho, porque Ayer dirige e escreve essa história de Segunda Guerra Mundial e faz um bom trabalho nos dois. É um enredo simples na medida certa com personagens cativantes também na medida certa e ação elevando a obra para um patamar mais memorável do que estar na medida certa.
Esse com certeza não é o primeiro longa-metragem a focar em tanques de guerra, talvez se tivesse saído uns 50 anos antes. Isso não anula o fato de que tal perspectiva é incomum em um gênero que prefere colocar o espectador ao lado do soldado enterrado na lama das trincheiras como em “1917”, tomando um exemplo recente. Em 2014, “Fury” é uma abordagem relativamente revigorante por ter o benefício da tecnologia que outras produções mais antigas talvez não tivessem. O realismo da obra, em nível de detalhe, é imediatamente perceptível e está em todo o lugar. Nos uniformes dos soldados e em seus rostos, na lama embolotada nas botas e nos tanques. Na caracterização se vê como os anos pesaram nas costas dos soldados, que perambulam com a higiene e os modos de suínos em um chiqueiro de metal e óleo. Uniformes que estão mais para um antro de escabiose e mau cheiro evocam um sentimento de realidade brutal a respeito da guerra, explícito demais para ser ignorado.
Essa tendência para a realidade brutal das coisas pode ser vista também na ação, sempre disposta a mostrar os detalhes mais sórdidos da violência em pessoas esmagadas pelas esteiras de um tanque e cabeças obliteradas por tiros de canhão. E nem sempre isso parece ser usado para agregar mais um elemento de diversão como algo de Quentin Tarantino, que usa muito o sangue para fins de humor e entretenimento. Todo o sangue e as cenas fortes funcionam dentro do retrato austero criado sobre o conflito. Todavia, não colocaria minha mão no fogo para dizer que intensidade e choque são os únicos objetivos, pois por vezes parece que o diretor se diverte um pouco na carnificina de matar cada um daqueles malditos nazistas desprezíveis.
O que não é de todo ruim porque a ação de “Fury” consegue o que nenhuma outra obra — que eu tenha visto — alcança ao mostrar combate de blindados, artilharia e infantaria numa perspectiva tão imersiva. Finalmente os tanques de guerra têm seu protagonismo, promovidos das típicas funções de aparecer pouco ou só na hora certa para ajudar no momento crítico da batalha. Essa empolgação só passa a não funcionar tanto quando o longa se deixa cair em alguns clichês clássicos como quase nunca ser atingido ou acertar mais tiros que os outros porque sim. Isso nunca fica mais claro do que no personagem de Brad Pitt, o único com um corte de cabelo impecável entre tantos outros descabelados cheios de piolhos. Até mesmo no final, quando se peca mais na questão das conveniências e os exageros clássicos de filme de ação surgem, a história faz um esforço extra para não estragar a imagem do ator e lhe dar o máximo de tempo de tela.
O maior incômodo aqui é também algo relativamente besta. Por que diabos os tiros de tanque e de metralhadoras parecem lasers? É ridículo. Faz um pouco de sentido. Não convence. Tudo bem, até se tenta explicar que metralhadoras possuem um projétil rastreador para ajudar a ajustar a mira. E isso antes mesmo do show começar, o que deveria ajudar em algo e de nada serve quando fica claro que foi uma decisão estética deixar os tiros parecendo lasers coloridos. O mesmo “Fury” que impressiona por usar um tanque M4 Sherman operacional da Segunda Guerra decide que é maneiro deixar tudo parecendo uma luta do império galáctico contra a escória rebelde.