Eu gosto muito de videogames. Tive praticamente todos os consoles e portáteis desde o Master System e continuo jogando até hoje com o mesmo gosto de antes. Mas isso não importa, a idéia aqui não é transmitir uma imagem pretensiosa de um saudosista apaixonado por jogos, devoto a eles desde criança, firme e forte no hobby com total intenção de continuar com isso no futuro, um velho jogando em vez de um velho escutando rádio e lendo jornal. Nada como dizer que jogos importam muito para mim e que eles contam histórias, nossas histórias. Mesmo assim, é provável que eu tenha começado a jogar antes mesmo de saber o que é cinema, por isso “Scott Pilgrim vs. the World” é tão curioso.
A vida de Scott Pilgrim (Michael Cera) se resume a pouco mais que tocar baixo numa banda com seus amigos e quebrar o coração eventual de alguma garota. Ele chega ao ponto de sair com uma garota de ensino médio de 17 anos, que absolutamente idolatra ele e tudo o que faz. Mas tudo muda quando Scott conhece Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead) e sente seu mundo chacoalhar. Ele só não sabia que junto com a garota complicada e meio anti-social vinha uma bagagem de sete ex-namorados do mal, todos os quais ele tem de derrotar para ficar com ela.
Essa é a história de “Scott Pilgrim”, uma série de quadrinhos criada e ilustrada por Bryan Lee O’Malley e publicada entre 2004 e 2010. Também é a história — relativamente — de “Scott Pilgrim vs. the World”, um jogo produzido pela Ubisoft para Xbox 360 e Playstation 3. E faz sentido que essas duas compartilhem história, pois ela é concebida pelo autor mais ou menos como um videogame, ou seja, tem diversas convenções ou características pertencentes aos jogos. São sete ex-namorados malvados que devem ser derrotados. Soa estranhamente familiar? Pois é, derrotar pessoas é uma coisa que aparentemente faz sentido aqui e, no entanto, só existe em jogos e animes. Os inimigos são como os chefes e a garota é a princesa no castelo. Bingo.
Colocando dessa forma, parece que “Scott Pilgrim vs. the World” tem uma boa base para se desenvolver como um filme. São apenas inspirações estruturais incorporadas no enredo, fases e chefes usados como obstáculos entre o protagonista e seu objetivo. Nada muito fora do comum até outras e outras e outras referências entrarem em jogo e tornarem toda a experiência um grande conglomerado delas. Aparentemente essa é uma das tendências da atualidade. Fazer referências a bandas, jogos, quadrinhos, livros e até outros filmes do passado é o que há no quesito criatividade. As pessoas querem saber de onde saiu esse nome, qual é a banda daquela camiseta, de onde é tal música e de qual jogo é esse símbolo.
“Scott Pilgrim vs. the World” é um paraíso para o espectador que gosta disso. De cara, o nome da banda é The Sex Bob-Ombs, referenciando o inimigo bomba dos jogos do Mario; um personagem se chama Young Neil por causa de Neil Young, músico canadense, e o guitarrista se chama Stephen Stills por causa de Stephen Stills, músico que trabalhou com Neil Young nos grupos “Buffalo Springfield” e “Crosby, Stills, Nash & Young”. E então há a música e os efeitos sonoros de “The Legend of Zelda”, a Triforce escondida, Sonic, “Earthbound”, “Rock Band” e muito mais. É até legal saber de onde saiu cada coisa mas também é algo que perde a graça rápido. Não que seja ruim, só há um certo limite. Não importa se o quadrinho faz exatamente a mesma coisa, algumas coisas funcionam melhor em uma mídia do que em outra.
O conceito de usar referências funciona melhor quando aleatoriamente Edgar Wright, o diretor, decide jogar tudo pra cima e transformar uma cena inteira num episódio de “Seinfeld” com o contrabaixo tocando o tema principal no fundo, as pessoas rindo, o cenário fixo e todo o resto. É um clássico momento “WTF”, como no linguajar geek, que mostra um gosto do diretor ao mesmo tempo que aproveita para fazer referência de forma que o quadrinho nunca conseguiria. Por outro lado, o oposto vale para outras coisas, principalmente nos pontos em que “Scott Pilgrim vs. the World” tenta se aproximar ao máximo de videogames, dos antigos em especial. Isso significa moedas para coletar e pontos por derrotar um inimigo para fazer, sim, mais uma referência. A questão é que não é à toa que a grande maioria dos jogos parou de usar pontuação, ranking e colecionáveis gratuitos. Derrotar um Goomba dá 100 pontos em “Super Mario Bros”. Que levante a mão quem já contou pontos jogando Mario.
Tem graça na primeira vez, não tanto na segunda, terceira, quinta e sétima vez. Ver isso num filme não parece a coisa mais natural de todas, mas até aí tudo bem, ainda é legal ver a pontuação aparecendo em cima do inimigo derrotado depois que ele vira uma avalanche de moedinhas. O maior problema é ver como “Scott Pilgrim vs. the World” traduz todo o resto das convenções de videogame. Uma batalha de chefe é quase sempre um ótimo momento nos jogos — “Dark Souls” que o diga — que aqui não fica tão legal, com atores reais e efeitos especiais. Cada ex-namorado tem qualidades e habilidades diferentes. Isso abre espaço para idéias boas, como um deles ter superpoderes por ser vegano e outro ser um skatista bad boy no estilo “Tony Hawk’s Pro Skater” com “Full Throttle”. Até chegar o momento das infames batalhas.
Poucas delas são realmente legais. Sim. O que normalmente é o ponto alto de um jogo e é tratado como tal pelo roteiro de “Scott Pilgrim vs. the World” acaba produzindo os piores momentos. Aqui se cruza o limite do aceitável entre jogos e cinema. O que era para ser épico e maluco é apenas exagerado e um tanto ridículo. Socos supersônicos e saltos de seis metros no ar, o inimigo entrando pela parede voando em direção ao herói para lutar enquanto efeitos especiais, onomatopéias e efeitos gráficos de impacto e todo tipo de estilizações típicas da abordagem ultra excêntrica do diretor fazem a festa. Aí fica ridículo. O limite da adaptação e da transmídia finalmente se mostra. Ou melhor, ao menos a execução de Edgar Wright não funciona tão bem, pois funciona menos como filme do que como um jogo. No papel, literalmente, isso também deve funcionar melhor. Dentre as poucas partes legais de atores interpretarem personagens super caricatos é ver como Mary Elizabeth Winstead de algum jeito conseguir criar uma atmosfera curiosamente sedutora acerca de sua personagem, o que justifica e muito o encanto de todos pela tal Ramona Flowers. Desse jeito a adaptação funciona, do resto não muito.