Orson Welles é o avatar do artista incompreendido no cinema. Certamente não foi o primeiro, tantos outros homens foram perseguidos em décadas, séculos e milênios anteriores por suas contribuições incompatíveis com o senso comum de seu tempo, mesmo que elas trouxessem algum tipo de avanço de cunho positivo. Jesus Cristo talvez seja um dos pioneiros no assunto ao chegar a ser morto por praticar bondade demais, enquanto Welles é um bom exemplo no cinema como qualquer outro. Inicialmente, sua carreira começou sua carreira com o que acabou sendo considerado uma das maiores, talvez a maior, obra-prima do cinema americano: “Citizen Kane”. O nível de sucesso de um diretor estreante, que também deu um espetáculo de atuação como o personagem principal, as técnicas de filmagem inovadoras em seu tempo e o roteiro ousado sobre uma figura proeminente da mídia foi o primeiro pé na porta de Hollywood do cineasta. Esse funcionou, o que veio em seguida nem tanto. “They’ll Love Me When I’m Dead” conta parte da história da odisséia do homem que começou no topo e passou o resto da vida descendo de lá, em suas próprias palavras.
Foram muitos projetos inacabados nos últimos anos de sua carreira. Orson Welles morreu em 1985 e seu último filme foi “F for Fake” em 1973. Foram doze anos sem nenhuma produção concluída, exceto por documentários, curtas, trailers e programas de televisão. O que ele fez nesse tempo? De todos os projetos, foi “The Other Side of the Wind” que tomou mais tempo e atenção do diretor. O dinheiro veio de um financiamento internacional esquisito, os atores foram escolhidos e trocados no meio do caminho, o roteiro completo sequer existia e as gravações perduraram por seis anos entre 1970 e 1976. Como diabos isso funcionou ainda é um mistério, agora um pouco menos obscuro com este documentário de Morgan Neville.
Sempre apreciei o trabalho de Welles, não só os filmes que dirigiu mas também seus papéis como ator. “The Lady from Shanghai” não só é excelente pela história e por momentos incríveis como a o tiroteio nos espelhos, sua atuação como um marinheiro que pouco se importa e seu sotaque peculiar são uma grande parte da experiência. “Touch of Evil” tem seus problemas de elenco aqui e ali ao mesmo tempo que se exalta e muito pelo gigantesco policial interpretado por ele, o vilão da história. No entanto, nunca cheguei a ler sobre sua vida com muito afinco como fiz com outros atores e diretores, o que me fez desconhecer quase completamente a existência de algum tipo de produção importante como “The Other Side of the Wind”, apenas me limitei ao conhecimento de que existiam projetos inacabados e que “F for Fake” era considerado seu último lançamento. Com isso, “They’ll Love Me When I’m Dead” funcionou perfeitamente como um veículo informativo sobre esse período desconhecido da carreira do cineasta, especialmente um projeto que tomou seis anos de sua vida enquanto estava em produção e talvez muito mais do que isso se levar em conta o quanto ele tomou conta de seus pensamentos.
Há muita informação para ser absorvida aqui. Se a página da Wikipédia for indicação de qualquer coisa, certamente é a de uma história enorme em torno do projeto, o qual foi bem mais que uma produção de fundo de quintal com pouco dinheiro e alguns atores desconhecidos aqui e ali. Comparando, ela é apenas um pouco menor que a de “Citizen Kane”, um filme que a maioria dos envolvidos com cinema tem uma opinião ou um estudo sobre. Aqui a idéia é como se fosse um making of diferenciado, talvez um unmaking of, um documentário sobre todas as formas como o filme não foi feito em tantos anos, com as razões para isso e entrevistas com alguns dos envolvidos com o projeto. Ao mesmo tempo que “They’ll Love Me When I’m Dead” é um estudo sobre como um filme é produzido, também é sobre várias formas como ele não é. Para cada acerto, um erro; para cada idéia nova, uma morre e o conceito inteiro do projeto acaba sendo reescrito e reinventado para acomodar as novas demandas. Um pouco enlouquecedor, sem dúvida.
Se fazer um filme soa minimamente empolgante para o espectador, “They’ll Love Me When I’m Dead” é um prato cheio por fornecer um ponto de vista privilegiado de uma produção como nenhuma outra de um diretor como nenhum outro, um produto que tentaram realizar em seu tempo e que talvez estivesse completamente fora dele. Certamente não é uma produção tipicamente hollywoodiana nem mesmo algo próximo do produto da tal Nova Hollywood em ascensão na mesma época. É um misto daquilo que Welles pensava a respeito dessas duas épocas, exceto que o pensamento nunca esteve firme o bastante para se colocar em um campo ou no outro. Então quando os anos passaram já não havia mais espaço para a tal teoria do autor — auteur em francês — quando as regras de Hollywood começaram a se transformar novamente. É um tanto trágico, sim, especialmente porque o projeto nunca foi concluído, isto é, não enquanto o diretor estava vivo. Foi apenas em 2018 que ele foi finalmente finalizado, alguns bons anos após a morte de vários dos envolvidos. É uma complicação e tanto que este documentário entusiasmadamente explica.
Ouvi dizer que as opiniões sobre “They’ll Love Me When I’m Dead” variam se o espectador assistiu a “The Other Side of the Wind” antes ou depois. Fez mais sentido assistir ao documentário sobre a obra antes para conhecer o contexto complexo em torno dela e entender como ele influenciou uma proposta que teve várias faces ao longo de seu desenvolvimento. Assistir sem o mínimo de contexto até parece uma alternativa pobre porque não há nada de tradicional ou comum no projeto, que talvez até possa soar estranho demais sem um pouco de luz sobre o que ele se propõe, propunha e deixou de propor no caminho. Considerando que nenhum detalhe importante sobre o enredo é revelado aqui, não há risco de algum de encontrar informação demais e estragar a obra em si e, melhor, talvez o documentário seja exatamente um bem-vindo incentivo que faltava para finalmente conferir a obra finalizada com a supervisão de Peter Bogdanovich e Frank Marshall.