Quem disser que o gênero Terror está em maus lençóis tem certa razão. Só não é uma característica exclusiva da atualidade porque sempre existiram muitos filmes ruins ao longo de todas as décadas. Não se houve mais falar deles por um bom motivo. Mesmo assim, ver o trabalho que Ari Aster tem feito nos seus dois últimos filmes mostra como uma obra de qualidade evidencia ainda mais quão medíocre é o resto, se não plenamente clichês e sem o mínimo de imaginação. “Midsommar” é a continuação do bom gosto demonstrado ano passado em “Hereditary” e, embora ainda este seja superior, não é por muito.
Um evento trágico na vida de Dani (Florence Pugh) mostra que a fase ruim que ela vivia poderia ser ainda pior. Seu namorado Christian (Jack Reynor) já considerava terminar o namoro há um tempo, mas se vê mais preso a ela do que nunca após isso. Então ressurgem planos de uma viagem à Suécia para visitar o vilarejo de Pelle (Vilhelm Blomgren), que celebra um tradicional festival de meio de verão. Christian e seus amigos iriam sozinhos, mas Dani acaba se juntando ao grupo em uma viagem aparentemente benévola que aos poucos mostra a natureza sinistra por trás das tradições seculares do vilarejo.
Muito pode ser dito a respeito da série “Sexta-Feira 13”. Formular, genérica, sem variedade, personagens burros e por aí vai. Não há como dizer que a direção é sofisticada ou algo assim, porém nenhuma crítica pode ser feita às trilhas sonoras de Harry Manfredini enriquecendo a experiência ao estabelecer clima, criando uma marca sonora para Jason ou apenas entretendo com uma melodia cativante. O que isso tem a ver com qualquer coisa? Especialmente num filme de Terror, a trilha sonora pode ser uma ferramenta de valor inestimável para prender o espectador à narrativa, ligá-lo a mais do que os eventos, os personagens ou os visuais. Ao menos nesse ponto, “Midsommar” consegue superar Hereditary ao usar o som, em geral, como matéria-prima para estabelecer uma atmosfera inquietante.
Não é apenas a música, sons de várias fontes contribuem para estabelecer o clima de cada cena de forma que a narrativa também funcione numa corrente diferente da tradicional, percebida e racionalizada. Isso não é motivo para esquecer das conexões concretas entre uma cena e outro, as regras tradicionais envolvendo cronologia, entrecortes, tomadas de reação e assim por diante. “Midsommar” respeita tais princípios e ainda consegue trabalhar num nível em que o espectador sente a tensão se conservar de uma cena para outra. Mesmo mudando completamente o cenário ou o personagem em foco, muitas vezes a atmosfera não morre com o corte para a próxima cena, é mantido e alimentado para que o espectador não perca o desconforto dos eventos mostrados.
Novamente, isso não é atingido usando apenas o valor de choque de uma morte violenta ou de cenas explícitas, embora essas sejam utilizadas ocasionalmente. “Midsommar” faz um grito se tornar um coral de guinchos nas vozes de um elenco inteiro berrando em conjunto e, assim, criando um sentimento dominante de insanidade coletiva muito convincente e raramente visto de forma tão funcional sem parecer ridículo. Por vezes é a música intencionalmente fora de ritmo, esquisita e desafinada para fazer o espectador sentir que há algo errado sem poder apontar o dedo para algo. O mesmo acontece quando a câmera faz arcos longitudinais e inverte a imagem, deixando o chão no alto do quadro, por exemplo.
Qual a função de tais escolhas? Talvez seja um pouco de auto-indulgência do diretor em querer fazer algo diferente e aproveitar a oportunidade para tal, embora não seja uma impressão definitiva. Isso só é mais notável nas cenas que claramente se aproveitam do cenário festivo e provinciano para abusar de composições simétricas destacando o movimento rítmico ou sincronizado. De resto, tais extravagâncias podem ser vistas como representantes do sentimento de desconfiança constante. Sendo um filme de Terror, é claro que as coisas têm de dar errado e as aparências serem enganosas. Não se sabe exatamente do que se pode desconfiar porque “Midsommar” esconde seus segredos diante dos olhos da audiência. Tudo soa muito estranho desde o começo, mas o que se pode acusar? Como se trata de um vilarejo isolado e uma cultura regional pouco conhecida, fica a dúvida se qualquer julgamento não é um etnocentrismo, uma opinião baseada em padrões inaplicáveis. O diferente não necessariamente é errado ou malévolo. Só que há algo de errado e malévolo, restando saber onde está o lado macabro da cultura.
O lado bom é que o mistério e as sensações carregam o espectador por um filme de trama não muito sólida. Seria errado dizer que não há história só porque o enredo é menos dependente da tradicional corrente de eventos, com inversões e reviravoltas súbitas. O forte do roteiro é criar uma experiência não só visual e racional como também emocional, o que também constitui o conceito de história. Não é como se o espectador fosse ficar com o psicológico abalado ou morrendo de medo, nada disso é necessário e sua falta não é demérito. Pelo contrário, o mérito de “Midsommar” é fazer do desconforto um elemento que acompanha o espectador e o instiga a descobrir quais são os segredos por trás de uma comunidade pacífica, onde todos vestem branco e estão sempre sorrindo, abertos para ensinar aqueles do mundo externo sobre seu estilo de vida. A discordância de forma e conteúdo é o símbolo-chave para mostrar que há algo a mais para ser visto além daquilo que é voluntariamente comunicado.
Isso também pode ser notado na característica peculiar de quase o filme todo se passar durante o dia. Nada de noite chuvosa com trovões ensurdecedores e relâmpagos revelando o assassino escondido no canto escuro, “Midsommar” é o atestado de óbito destes clichês por mostrar que nenhum é obrigatório para a tensão ou medo. O subtítulo brasileiro até faz questão de exacerbar isso com “O Mal Não Espera a Noite”, mais uma adição ao repertório nacional de traduções toscas. O simples fato de um terror funcionar durante o dia e não só isso, em dias ensolarados e paradisíacos do interior da Suécia, mostra como a competência tem dominância sobre estereótipos aceitos e reforçados durante décadas. Definitivamente não é um feito fácil e mostra como o filme tem força suficiente para subverter com sucesso, sem mudar porque sim.