O primeiro filme brasileiro a vencer o prêmio do júri em Cannes. Também é a segunda vez que Kleber Mendonça Filho participa com um filme seu no festival, a última sendo com Aquarius em 2016. Receber tal prêmio é uma honra e um dos maiores reconhecimentos atualmente, é um sinal de esperança para aqueles que consideram o cinema brasileiro morto faz tempo. Mas será “Bacurau” um filme tão bom assim? A curiosidade certamente foi despertada pelos méritos, com bastante gente indo aos cinemas conferir se a obra se tratava do próximo “Cidade de Deus” em termos de qualidade. Há uma parcela de surpresa no enredo, porém a maior delas é ver que este é um filme apenas modestamente razoável.
Bacurau é uma pequena cidade nos confins do sertão pernambucano, com 50 habitantes ou menos e desconhecida para a maior parte do país. Todos se conhecem no lugar e lutam juntos para sobreviver ao dia atual e chegar ao próximo. Os serviços normalmente acessíveis estão longe e o que acaba chegando na cidade é limitado, apenas o mínimo necessário para se manter. É uma rotina dura, uma realidade de que as pessoas não podem fugir e por isso é aceita. Mas quando a cidade é completamente desconectada do resto do país e um assassinato acontece, todos sabem que há algo muito errado acontecendo.
Além de todo o alarde por causa dos eventos e dos prêmios, “Bacurau” também ganhou fama no boca a boca por conta da trama se mostrar bem diferente do que parece. Inicialmente, parece que é uma história mais ou menos conhecida. Aquilo que se chamaria de filme de favela aplicado a um contexto diferente, a mesma exploração de miséria e das diferentes prioridades e características de uma vida alheia ao conceito da normalidade. Percebe-se que não há exagero no tratamento da cidade e que o meio do nada seria mais localizável que localização real. É de se perguntar a razão para justificar uma colonização. Seja lá o que moveu os responsáveis a estabelecer moradia anos antes, o local ainda se mantém de pé por meio de alguns poucos insistentes que prezam pela sua história.
Apresentar um cenário tão único é um dos pontos fortes de “Bacurau”. Para a maior parte da audiência, presumivelmente, a realidade apresentada não poderia ser mais diferente. Começa pela localização remota e a ausência de qualquer tipo de facilidade infra-estrutural dos últimos 50 anos. Ao mesmo tempo que há smartphones e sinal de internet, não se vê sinais de conforto, de higiene e de bem-estar. A simples idéia de tomar um café com leite e um pão de queijo no meio da tarde é inconcebível. De vez em quando chegam suprimentos médicos e alimentos a serem divididos entre a população, a única forma de auxílio externo que se conhece além dos caminhões-pipa. No mínimo, o filme faz refletir sobre como a vida existe até mesmo nos lugares mais inusitados e como há facetas ocultas da realidade que se considera padrão.
Ao mesmo tempo, ser interessante não é o mesmo que ser bom entretenimento. Esse começo de filme é inteiramente focado na exposição de quem são os personagens, onde eles vivem, o que fazem e o que querem. Natural, assim como dita a estrutura padrão das histórias. Só não há motivo para estes elementos serem chatos, há formas e formas de contextualizar o espectador sem deixá-lo entediado. Infelizmente, “Bacurau” não as encontra e apresenta um início arrastado e desestimulante, apenas se sustentando por meio do cenário incomum e não mais do que isso. Apesar de coerentes, os eventos não prendem o espectador à experiência nem mesmo quando sua função se revela depois da grande reviravolta do enredo. Aquilo que parecia ser apenas um drama de sertão logo mostra um outro lado completamente inesperado, criando um contraste e tanto entre a primeira e a segunda parte.
Uma virada bem-vinda seria uma inversão de julgamentos de valor; um começo ruim e um resto bom após a reviravolta. Não é o que acontece. A narrativa até se torna mais engajante por introduzir um elemento tanto inesperado como dinâmico. Há mais atividade, mais risco e mais drama envolvidos na história do vilarejo pernambucano, não apenas um retrato de suas vidas meramente expositivo e sem direcionamento. O problema é que nem essa adição se mostra sustentável por muito tempo e logo cai por terra quando incoerências e conveniências narrativas tomam protagonismo, quando a necessidade de alguns eventos acontecerem têm prioridade sobre a credibilidade. Prefiro esconder os detalhes para não revelar qual a grande surpresa da obra, apenas dizer que aquilo que começou ameaçador se torna burro e incompetente subitamente e sem razão evidente.
Só não se pode dizer que “Bacurau” é um filme vazio, sem conteúdo e sem idéias por trás dos eventos. Algumas idéias estão enraizadas no cerne do enredo como um todo, sem referência direta em nenhum momento; outras são pouco sutis e não muito inteligentes por praticamente esfregar na cara do espectador como esta é uma crítica ao cenário político atual. Pelo menos há a intenção de transmitir algo, bem-sucedido ou não. Um último ponto diz respeito ao trabalho pavoroso de dublagem. Sim, é um filme brasileiro ambientado no Brasil com alguns personagens estrangeiros falando seu próprio idioma. É apenas ridículo ver os dubladores dos últimos falando português com sotaque no mais tosco estereótipo americano, risível em um primeiro momento até perder a graça. Se houver opção, legendado é o caminho.
4 comments
Bacurau: Minha Pica no seu Pau
Não entendi o trocadilho, mas pontos pelo senso de humor!
Caio, acabei de ver o filme e ler umas 10 análises/críticas sobre ele. Devo dizer que a sua é a que mais se parece com minha percepção depois de assistir o filme. Começo arrastado, reviravolta inicialmente interessante, depois mistificada a um ponto em que nada mais faz sentido, mesmo num cenário distópico. Em relação ao tal psicotrópico: seria isso uma referência a alguma outra obra já existente? Porque não consegui compreender o papel dele, por mais que me esforçasse. Lendo as análises também não vi explicação sobre este assunto, assumo que, na sua grande maioria, o público também não entendeu.
No mais, seu texto é excelente e não demonstra viés político (se aprova ou não as ideias que o filme tenta transmitir), mas o meu infelizmente não me permite aclamá-lo por este lado também. Pensar num prefeito que “vende” sua cidade para uns americanos praticarem caça com seres humanos porque supostamente estamos “nos vendendo” para os americanos, para mim é uma piada de muito mau gosto. É reforçar sentimentos e comportamentos que ao longo da história só trouxeram tragédia e, além disso, renegar um mundo globalizado que cada vez mais tira as pessoas da miséria e faz os números evoluírem, estes sim, detentores de credibilidade e honestidade por natureza.
Em resumo, na minha humilde opinião: filme fraco, sustentado por ideias fracas e extremamente arrogante, sendo culpado pelos principais pontos que acusa: preconceito, estereotipagem e falta de visão clara da realidade.
Eu cheguei a escutar que “Bacurau” é um filme incrível porque ele mostra o melhor lado possível da vida: viver drogado em uma comunidade no meio do nada matando estrangeiros filhos da puta. Se a pessoa acha que isso é uma vida ideal e que cinema é uma extensão do seu ego e sua percepção egoísta de realidade, então é interessante repensar quando falam que é o melhor filme brasileiro de todos os tempos.