Judy Traherne (Bette Davis) não tem muito o que fazer da vida além de suas preocupações de sempre. Ela mesma assume que sua rotina se resume a galopar e cuidar de seus alazões com a ocasional festa em sua mansão fornecendo motivos recorrentes para ela sair fazer compras, afinal deve sempre estar com um visual novo e chamativo para seus convidados nunca deixarem de notar sua presença. Contudo, algo a vem incomodando. Ela tenta negar que é algo sério, dores de cabeça, tontura e visão duplicada têm se tornado cada vez mais freqüentes e incômodas, atrapalhando até mesmo essas atividades. Judy descobre que seu problema é sério e resultante de um tumor no cérebro, uma condição com um resultado esperado e irreversível. “Dark Victory” é o retrato do resto de uma vida.
“Dark Victory” começa um pouco esquisito. Todo começo de filme deve, a princípio, fazer o possível para deixar seu espectador relativamente confortável com o conteúdo apresentado. Isto é, não confortável no sentido de tranqüilidade e passividade diante dos eventos, trata-se de uma forma de criar uma conexão para que este se sinta bem na posição de alguém assistindo a algo desconhecido. Curiosamente, criar desconforto é uma das formas de prender a pessoa à experiência, desde que este desconforto seja intencional e acompanhado de interesse. Seria bastante infeliz se este último sentimento causasse o abandono do público à obra logo no começo, mas ele pode ser uma ferramenta elementar num filme de Terror ou Suspense, por exemplo. A questão, neste caso, é um pouco diferente e é parecida com algo que acontece em “A Streetcar Named Desire“, um detalhe pequeno e comentado pelo próprio Elia Kazan em seu livro sobre direção de cinema, “Kazan on Directing”.
Pode passar despercebido caso não se pense no assunto, como aconteceu comigo. Kazan afirma que Vivien Leigh demorou para entrar na personagem e atuar de acordo com a intensidade emocional demandada pelo roteiro, que não era das mais intensas nas primeiras cenas do filme — especialmente em comparação com o que vem depois. Se o espectador parar para pensar em retrospecto, Leigh realmente está um pouco exaltada demais já de início e depois parece se ajustar melhor. Algo parecido acontece com Bette Davis em “Dark Victory”. É visível que a intenção no começo é manter um ritmo acelerado: cenas curtas, saltos ligeiros na mudança de ambientes e uma narrativa composta apenas pelos eventos essenciais do enredo. A idéia, naturalmente, é refletir como a chegada da doença parece ser de uma vez só, apesar dos sintomas terem aparecido gradualmente. É uma saída inteligente, já que seria inviável mostrar a evolução da doença desde o primeiro sinal.
A forma como Davis reage a este ritmo acelerado, por outro lado, não soa convincente num primeiro momento. Sua personagem deve ser enérgica e jovial, com uma resposta na ponta da língua ardendo para sair e reafirmar a posição de força dela na situação. Faz sentido, porém isso é artificial e inautêntico, parece mais que a atriz não consegue se conter e solta as falas muito imediatamente, sem respeitar as pausas naturais de uma conversa, por mais que esta seja calorosa. Esta é minha única reclamação a respeito de “Dark Victory”, realmente. É apenas irônico que a interpretação de Davis, por melhor que seja, não tenha sido o bastante para render o Oscar que eventualmente foi vencido por Leigh em “Gone with the Wind“. Ainda mais curioso é ela ter vencido seu segundo Oscar por “A Streetcar Named Desire“, onde Leigh demonstrou o mesmo problema que pragueja Bette Davis aqui.
Também é irônico que Davis seja a fonte de ambos o ponto mais questionável e também do melhor que “Dark Victory” tem para oferecer. Tão logo que este início passa, quando se vão os sinais de um romance nascido com um traço de melodrama, a história cresce e se torna aquilo que me chamou tanto a atenção quando bati os olhos na premissa pela primeira vez. Esta é uma tragédia verdadeira. Uma pessoa tem o destino selado sem chance de sucesso, sem esperança em que se agarrar para ter uma chance, por menor que seja, de superar sua condição. Não é uma novidade para o espectador porque se trata da premissa de toda a obra, o peso do drama se encontra nas pessoas cientes de tal destino cruel. A própria garota não sabe o que vai acontecer com ela em alguns meses. Então o que é menos cretino, esconder a verdade e deixar o fim chegar de surpresa ou expor a verdade e arriscar a ruína do tempo restante?
Davis é realmente a estrela de “Dark Victory”, não há como negar. Assim que passa a impressão de inverdade de sua performance inicial, a atriz se ajusta ao papel e passa a respeitar os princípios da naturalidade em consonância com as qualidades da personagem. Ao menos não há erro algum em dizer que esta é cheia de energia, pois ela mal consegue conter o entusiasmo de seus sentimentos, sejam eles quais forem. Bem ou mal, o começo acerta em transmitir esta qualidade que vem a ser definitiva de uma parte considerável da história. Eis a ironia de uma performance esplêndida ao retratar uma personalidade cheia de vida em uma condição que limita a extensão dessa própria vida, intensidade colocada em xeque diante de longevidade. Se há um sucesso absoluto na performance de Davis, é despertar a compaixão do espectador para com a situação e, mais do que isso, conquistá-lo quando os sentimentos em jogo se mostram muito mais mutáveis do que a qualidade definitiva e inalterável do destino da garota.
No caso de apontar outros problemas da obra, só restam outros menores. O início do envolvimento romântico principal da obra é um pouco rápido demais, característico de várias obras da época em que o apaixonar era tratado com certa leviandade, como algo ainda mais instantâneo do que dita o senso comum. Sabe-se que é uma reação forte e que pega as pessoas relativamente de surpresa sem necessariamente evidenciar os motivos por trás de tal paixão, mas dificilmente é algo que clica em dois segundos como se costumava representar. Ademais, a fotografia de “Dark Victory” também se mostra pouco inspirada. Ela cumpre sua função prática de tornar as coisas visíveis e não mais do que isso, sequer se aproximando daquilo que se chama de iluminação dramática padrão. Às vezes chega a parecer amadora quando sombras duplas e triplas surgem nas paredes dos cenários. É o horror de muitos cinematógrafos e talvez a morte parcial da narrativa visual e de tudo que a manipulação de luzes significa num filme. Entretanto, não posso dizer que é um espinho fatal no coração da obra, que sem dúvida guarda sua maior força em outras áreas.