“Shadow of Doubt” começa com Charlie Oakley (Joseph Cotten) contra a parede. Alguns homens estão atrás dele e ele não sabe ao certo se tem disposição de ver o que eles querem ou se prefere se manter indisponível. Finalmente, ele decide sair de Nova York e ir para a Califórnia visitar sua irmã e sobrinhos, passar um tempo lá para ver se a mudança de cenário melhora as coisas de alguma forma. Sua sobrinha, Charlie Newton (Teresa Wright), o trata como um ídolo, a companhia que ela escolheria para passar o resto da vida caso fosse obrigada a escolher uma só. Mas há algo que o rapaz não está contando para sua família, algo que uma hora ou outra virá à tona.
Há algo fascinante em “Shadow of Doubt”. Algo diferente. A maioria das vezes que começo a escrever sobre um filme de Hitchcock me faz pensar que, no fundo, todos seus filmes são iguais. Os pontos notáveis costumam ser os mesmos: as escolhas similares de protagonistas masculinos e femininos, alguém assassinado, a narrativa fazendo o espectador passar mais tempo sem fôlego do que assistindo normalmente. Não é o que se encontra na maioria das obras do diretor? Uma loira estonteante em Grace Kelly e outra em Tippi Hedren e outra em Kim Novak, a parceria de quatro filmes com ambos James Stewart e Cary Grant. Os elementos são recorrentes, não há como negar, porém uma análise mais profunda demonstra que cada obra encontra brechas entre as familiaridades para se constituir como algo único.
Deve haver algum bom motivo para “Shadow of Doubt” ser tratado como um dos melhores de Alfred Hitchcock e ser seu favorito pessoal. Talvez para a crítica da época este tenha sido um triunfo notável porque muito de seu trabalho anterior tinha sido feito na Inglaterra e por trabalhos memoráveis como “Rear Window” e “Psycho” estarem há mais de 10 anos de distância. Em Hollywood, ele estava em seus primeiros anos de atividade, ainda construindo sua gigante imagem. Atualmente, a reputação da obra se mantém por motivos diferente porque a perspectiva é completamente diferente. As audiências atuais do diretor nasceram quando seu nome já estava lapidado em mármore com o epitáfio de Mestre do Suspense, logo há tantos filmes mais para se considerar na hora de eleger os melhores. E esse algo especial está aqui, definitivamente.
Dentre todas as histórias parecidas, esta é uma daquelas que chega mais perto da imagem coletiva do público sentado na beira do assento, das pessoas voltando a roer unhas depois de terem tentado tanto parar. Vários longas de Hitchcock usam o suspense a seu favor como ninguém mais, poucos mais do que “Shadow of Doubt” pelo simples fato dele flertar com o perigo muito de perto, escondendo o prêmio e todos os segredos debaixo do nariz da audiência com ela sabendo disso, mas sem certeza. Pode acontecer de um espectador não se deixar enganar ou de enxergar através do truque antes da hora, assim estragando a obra como um todo porque o roteiro pareceria tolo de revelar seus mistérios antes da hora. Imagino até que seja provável. Meu caso foi algo similar; quase isso, mas não exatamente. Nunca houve a certeza de que minhas suspeitas eram reais ou de que as cartas estavam à vista como pareciam. Naturalmente, eram ainda maiores a tensão e a ansiedade de estar tão perto da verdade sem poder segurá-la com firmeza.
Até quando parece que o óbvio se expõe descaradamente há um traço de dúvida se a aparência é confiável ou se é uma isca para uma reviravolta. Só não saberia dizer se esse temor por uma virada eventual é causado pelo filme ou se assistir vários suspenses de Hitchcock me deixou assim. De qualquer forma, a resposta não é resultado exclusivo de uma dessas duas possibilidades porque o roteiro tem uma postura não tão convencional no tratamento de seus mistérios, não deixando para revelar toda a verdade apenas nos momentos finais ou a revelando aos poucos. A grande jogada de “Shadow of Doubt” vem antes do que de costume no gênero e muda a dinâmica da história. A dúvida e a falta de informação deixam de ser as fontes de tensão e dão lugar para algo que força uma releitura de tudo o que aconteceu até então, revirando até mesmo a relação entre personagens.
Esta segunda parte brilha mesmo por exigir do elenco interpretações renovadas. Passando a estar carregadas de subtexto, as performances de Teresa Wright e Joseph Cotten ganham uma segunda face semioculta, perceptível para a audiência e escondida do resto dos personagens. Ainda melhor é ver que essas duas fases, por assim dizer, são ambas executadas com proeza. Inicialmente, Teresa Wright faz valer a imagem de uma menina imensuravelmente feliz com a presença do tio em sua casa, evitando parecer que está forçando uma persona simpática e prestativa; pelo contrário, é impressionante que ela consiga parecer tão amável sem soar exagerada. Joseph Cotten, por outro lado, ajuda a atriz dando motivo para acreditar que é possível gostar tanto de um parente assim, sempre com um toque de mistério apoiando o charme. Basta imaginar essa relação ficando mais interessante quando as máscaras entram em jogo.
Os problemas são muito pontuais. Um traço da caracterização do personagem de Cotten, pouco sutil e artificial, e um clímax com ótima progressão até ele, mas que começa e acaba muito rápido. Não diria que é meu filme preferido do diretor, mas “Shadow of Doubt” certamente dá motivos de sobra para estar entre as grandes obras de Alfred Hitchcock. Sua ousadia na exposição de informação mostra que coragem às vezes traz bons resultados, aqui notados no aumento de inquietação e envolvimento do espectador com a história. Assim como vários suspenses do cineasta, a falta de esclarecimento dissemina o caos e faz com que se deseje mais e mais. “Shadow of Doubt” flerta com o perigo ao esconder seus segredos sem usar as sete chaves.