“Can You Ever Forgive Me?” é baseado em uma obra literária homônima de Lee Israel, aqui interpretada por Melissa McCarthy. Protagonista do longa-metragem, ela é apresentada como uma autora que não consegue mais ganhar a vida com isso. Seus livros até venderam bastante e fizeram certo sucesso no passado, mas seu nome nunca chegou a ser elevado ao patamar dos escritores contemporâneos de respeito. As contas apertam cada vez mais e Lee chega no limite quando finalmente tem uma idéia brilhantemente questionável: usar seu talento literário para atiçar a curiosidade do leitor pelos detalhes picantes e um pouco mais do que isso.
Uma atriz de comédia indicada ao Oscar? Não é exatamente novidade. Melissa McCarthy já esteve nessa posição em 2012 por “Missão Madrinha de Casamento”, um filme de comédia. Talvez os comentários a respeito de sua indicação por “Can You Ever Forgive Me?” existam por conta de ele ser um filme de Drama. Então uma pergunta mais específica seria: “Uma atriz de comédia indicada ao Oscar por um drama?”. Curioso, em um primeiro momento, mas eventualmente se mostra uma indicação justa e até mesmo surpreendente, já que McCarthy se sai melhor do que nas dezenas de comédias que fizeram sua carreira e fama. Comparar sua personagem aqui com a caça-fantasmas de “Ghostbusters” chega a ser de mau gosto.
Inicialmente, a trama de “Can You Ever Forgive Me?” não chama a atenção. É só por causa de Melissa McCarthy que o espectador tem um motivo para ter sua atenção despertada e eventualmente transformada em interesse genuíno. Já era de se esperar que seu papel não seria nada como outros de sua carreira, personagens com um ou dois parafusos a menos, de lógicas duvidosas e atos bizarramente chocantes. Mesmo assim, não deixa de ser um bom chamariz ver uma personagem completamente fora desse modelo de comédia sem sentido, alguém tão comum, banal, cotidiana, de problemas mundanos, que poderia ser facilmente comparada com algum membro da família. Com certeza já se encontrou alguém muito parecido em outro lugar, se não na família. Todo mundo conhece alguém deste tipo, eles estão em todo lugar.
Essa é aquela pessoa que em exatos vinte segundos de conversa demonstra ser mal resolvida. Ela reclama de um fato aleatório e logo chega em como e por quais circunstâncias sua vida está uma porcaria injusta, provavelmente culpando uma ou mais pessoas por tudo. A forma como ela trata as pessoas diz muito sobre si e todos que têm o infortúnio de pegar ela num momento ruim — o que não é difícil — terminam a conversa pensando em como deve ser terrível ser mal-amado assim. O crítico de cinema é freqüentemente imaginado como essa pessoa: sempre sonhou em ser cineasta e nunca conseguiu ter sucesso algum, então se relegou ao trabalho ordinário de avaliar o trabalho dos outros e destilar suas frustrações profissionais em cima daqueles que tentam construir uma carreira. Obviamente, não é assim que acontece ou, pelo menos, é muito menos comum do que se pensa. Melissa McCarthy interpreta essa pessoa.
Uma coisa é escolher um papel sério entre as centenas de milhar nas pilhas de roteiros que chegam nas mesas dos estúdios; outra é pegar algo característico como a protagonista de “Can You Ever Forgive Me?” como forma de divergir do caminho da comédia. O melhor mesmo é ver que McCarthy se dá muito bem neste papel de tratar os outros mal como se tivessem algum tipo de culpa por tudo que aconteceu. A forma como ela olha para as pessoas e as coisas diz tudo sobre a natureza e presente estado da personagem, que sente raiva e frustração e vontade de descarregar, mas não sabe o que fazer. Quem culpar? Quem merece receber esse lote de lixo psíquico? Às vezes não é culpa de ninguém; ou melhor, ninguém além da própria pessoa. A espuma é quase visível nos cantos da boca e até seria se a personagem fosse apenas um tique mais descontrolada. Ainda não chegou lá, mas já não faz questão de ser benquista por ninguém.
Curiosamente, nem o roteiro faz. Ele não tenta entrar no clássico esquema de tentar humanizar o personagem e criar o laço de empatia, fazer o espectador entender a situação toda. Não. “Can You Ever Forgive Me?” parece não fazer questão de tentar amenizar as características detestáveis de sua protagonista e isso é ótimo. Até existe certo momento em que acontece um tipo de redenção e consciência pesada, mas nunca do jeito forçado que transforma o personagem e lhe confere uma nova natureza depois de passar toda a jornada carregando o fardo de seus defeitos. Quando isso acontece, inclusive, é um dos pontos mais emotivos e sinceros justamente por soar condizente com tudo aquilo que foi mostrado até então. Chega a ser revigorante ver algo assim, como um animal selvagem solto para fazer o que ele sabe sem interferência alguma. A personagem simplesmente faz o que faz sem estar amarrada pelas demandas do clichê.
“Can You Ever Forgive Me?” merece destaque principalmente por parecer uma obra sem sal e demonstrar ser justamente algo bem diferente. De fato, começa morna e com nada além de McCarthy expondo sua personagem peculiar, então gradualmente fica mais e mais interessante até a conclusão. É aquilo que toda história tem como objetivo: deixar o público gradualmente mais interessado até surgir uma boa hora para encerrar quando tudo ainda está alta. Simples e efetivo, o roteiro demonstra ser outra surpresa e não só mais uma adaptação da história de alguma figura famosa que deu sorte de virar filme. Definitivamente não parece o típico filme de Oscar e muito menos o receptor de uma indicação gratuita para Melhor Roteiro Adaptado, ele merece.
A participação ocasional de Richard E. Grant apenas coroa os vários sucessos de “Can You Ever Forgive Me?” com uma atuação que simplesmente não erra. Pode-se dizer que há menos tempo para isso e não seria mentira, porém também pode-se dizer que há menos tempo para causar uma boa impressão e criar um personagem de personalidade. É isso que Grant faz com seu papel ao estilo do amável andarilho de Dustin Hoffman em “Midnight Cowboy“. Considerando tudo isso, não é pouca coisa um filme se elevar tão alto quando a primeira impressão foi de algo bem sem graça.