Depois de “Moonlight” se mostrar um dos filmes mais polêmicos dos últimos anos, Barry Jenkins volta a receber indicações lá e cá com “If Beale Street Could Talk”. A referida polêmica não poderia ser outra além da tragicamente cômica confusão do Oscar de Melhor Filme de 2017, quando “La La Land” foi anunciado e as pessoas subiram no palco e os discursos já estavam na metade quando retificaram que, na verdade, “Moonlight” era o vencedor. Mas não foi apenas isso. Além do fato de uma obra de baixo orçamento amontoar indicações em várias categorias e até vencer em algumas, houve certa disparidade entre as opiniões. Uns diziam ser o melhor filme do ano, uma experiência tocante e com a sensibilidade afinada para extrair uma história potente e socialmente relevante para o cenário sociopolítico atual. Outros apontaram como um bom filme de alguns méritos e alguns problemas, enquanto outros chegaram a recusá-lo abertamente.
Dessa vez a história retorna para os Estados Unidos dos Anos 70. Clementine (KiKi Layne) e Alonzo (Stephan James), mais conhecidos como Tish e Fonny, andavam juntos quando pequenos e assim continuaram até se tornarem os genitores de um amor singular. Mas nem a sinceridade e clara ausência de malícia impede que Fonny seja acusado de estuprar uma moça latina, o que o leva para a cadeia eventualmente. Disposta a provar a inocência do marido do jeito que for, Tish corre contra o tempo por outra coisa estar em jogo: ela espera um bebê.
Assim como “BlacKkKlansman“, “If Beale Street Could Talk” se passa na década de 70. Mesmo depois da vida e da morte de Martin Luther King e Malcolm X, o fenômeno do racismo ainda podia ser sentido penosamente pela população negra. Era uma época de tolerância à intolerância, em que muitas vezes desrespeitos eram engolidos para evitar maiores problemas com pessoas em posições de poder, dispostas a prejudicar pelo simples prazer do ato. Alguns dos maiores absurdos já não eram mais institucionalizados enquanto vários outros menores aconteciam na surdina, ignorados por uma parcela da população não afetada e tolerados por aqueles que não podiam fazer muito a respeito, já que eram as vítimas. Mas ao contrário de humor, essa obra de Barry Jenkins busca mostrar a abrangência dessa corrente de repulsa, como ela afeta até mesmo as melhores pessoas.
Não existe algum tipo de merecimento quando se fala em abuso e desrespeito racial, claro. Mas quando alguma crueldade acontece, alguns exemplos se sobressaem por levantarem quase imediatamente a questão: “Entre tantas pessoas, o que esta fez para merecer isso?”. Tish e Fonny são duas pessoas sem ambições maiores que arranjar um cantinho para chamarem de seu e escutar discos de vinil até que a cerveja comece a pesar e os embale no sono de anjos. Eles foram os melhores amigos quando crianças, sem malícia e sem pensar em nada além do prazer da companhia e, não obstante, caem no escárnio alheio. Construir essa relação é construir a fundação de “If Beale Street Could Talk”; sem isso não há impacto na tragédia do casal porque o investimento do público nos personagens é nulo.
No entanto, essa base é fruto de ambos os méritos e os problemas de “If Beale Street Could Talk”. Em um pólo, as atuações merecem todo o destaque e todo o aplauso que vier. Poucas coisas são tão belas quanto uma cena ostentando a qualidade orgânica tão almejada quando se espera que cada ator apenas aja naturalmente, como se fosse algo simples. KiKi Layne traz consigo tal qualidade em cada momento que exige nada mais que a representação de Tish como uma garota que simplesmente não nasceu com a energia e habilidade de dizer o que se passa em sua mente com facilidade. Diante de embaraços e injustiça, apenas um esforço incomum e muita pressão a fazem agir diferente. Logo, quando o personagem de Stephan James surge com todo o amor e atenção que consegue dispor, é natural ligar os pontos e perceber que ele ama aquela garota justamente por seu jeitinho contido e nada mais, sem precisar explanar e expor nada. A mesma eficiência se nota quando a gravidez é revelada abertamente e vários personagens interagem com a garota. O brilho de outros papéis se faz evidente com a diversidade de personalidades mostrando suas cores em um momento intenso, seja positivamente ou negativamente. Com Fonny, é diferente a forma como ele a enxerga e exatamente por isso é único.
A única exceção é um personagem de participação pontual e infeliz. Seu tempo de tela mínimo já é o bastante para desvirtuar completamente uma noção de antagonismo que poderia ser tão mais condensada, desenvolvida e, conseqüentemente, eficiente se não fosse toscamente reduzida a uma caricatura ambulante. E nem se trata tanto de um demérito do ator, já que o papel não abre espaço algum para expansão e desenvolvimento. Neste caso, o maior problema de “If Beale Street Could Talk”,seu roteiro, é o grande vilão. Problemas não se encontram na premissa, na escrita dos personagens e na progressão dos eventos. É na estrutura que o grande pecado se encontra.
A idéia é simples o bastante. Tendo um relacionamento sólido e relacionável, convidativo para a empatia do espectador, é possível tornar a situação tão crítica quanto necessário. Então as performances se exaltam e trazem ao primeiro plano o relacionamento como algo elementar, dando um grande passo a ser conseqüentemente minado pela forma como o roteiro estrutura seus eventos. Chega a ser um desperdício de talento ver o revezamento entre a premissa no presente — o esforço de Tish pra inocentar Fonny — e cenas do relacionamento passado pelo mais explícito propósito de amplificar o sentimento de tragédia. Cada flashback é “If Beale Street Could Talk” esfregando na cara do espectador uma razão para se importar, mais uma cena de pureza amorosa a ser lamentada. O único aspecto redentor de tais momentos é a sintonia perfeita dos atores, que poderia existir em melhor forma do que a atual.
“If Beale Street Could Talk” tem tido uma recepção bastante calorosa. Basta ver superficialmente que as notas estão altas e que as indicações estão somando. Mas, enfim, não será surpresa se o saldo final for similar àquele de “Moonlight“. Aqueles que amaram o filme anterior de Barry Jenkins provavelmente acharão que este é um avanço da capacidade do diretor como um dos mais notáveis artistas dos últimos anos. Os que não foram enfeitiçados por tal charme, por sua vez, podem enxergar uma obra simples em essência e com suas qualidades, mas com problemas bem evidentes. Vide a música destoante da sutileza dos visuais naturalistas, por exemplo, parecendo mais um elemento provisório nunca substituído que uma composição direcionada.