No começo dos Anos 70, a banda “Smile” passa por maus lençóis em sua carreira na vida noturna londrina. Eles não têm mais um vocalista, mas isso muda quando o jovem Farrokh Bulsara (Rami Malek) entra na posição e transforma tudo. “Smile” vira “Queen” e Farrokh se torna Freddie Mercury. Junto de Brian May (Gwilym Lee), Roger Taylor (Ben Hardy) e John Deacon (Joseph Mazzello), o “Queen” cresce de suas origens humildes até se tornar maior do que qualquer um dos membros poderia ter imaginado. Suas músicas fazem sucesso no Reino Unido e no mundo, as pessoas amam o que eles fazem, porém não é só isso. “Bohemian Rhapsody” reconta a vida do “Queen” como banda desde seu princípio e as dificuldades do vocalista de encontrar sua própria voz, seu próprio eu em meio a uma embriaguez de sucesso.
Com tantos documentários e biografias sobre praticamente todos os cantores famosos da atualidade e do passado, era curioso o “Queen” e Freddie Mercury não terem absolutamente nada no mercado. E não se trata de esperar algo de uma banda de nicho dos Anos 70, como “Mott the Hoople” ou “Velvet Underground”, “Queen” é uma das bandas de maior sucesso da época, uma cujas músicas a maioria das pessoas reconheceria no rádio. O estilo flamboyant, rock and roll e, acima de tudo, a voz de Freddie Mercury garantem que uma melodia como Dont Stop Me Now seja inconfundível. Por que “Bohemian Rhapsody” não aconteceu antes? Difícil saber. Antes de 2010, sequer haviam planos para uma produção do tipo, o que mudou quando Sacha Baron Cohen entrou para o papel do grande vocalista, saiu e abriu espaço para Rami Malek. Mas terá a espera finalmente valido a pena?
Não necessariamente. Relativamente, na verdade. “Bohemian Rhapsody” não é um filme ruim, longe disso. Mas também não dá para dizer que o sucesso é digno do tamanho da banda e de todo o tempo de espera. A extensa lista de sucessos e a variedade de conteúdo da banda ao longo dos anos garantiram longevidade, pois gente que nasceu anos depois da morte de Mercury ainda conhece, ouve e gosta da banda sem perceber traços de envelhecimento. Nada denuncia a banda como um som antigo. Enquanto é fácil reconhecer as harmonias dos “Beach Boys” ou dos Beatles como um produto dos Anos 60, dos ritmos dançantes e longos como o Disco dos Anos 70 e os rifes introdutórios ligeiros como uma marca do rock clássico de Chuck Berry nos Anos 50, não acontece o mesmo com o “Queen”. Há um pouco para todos os gostos.
Se a vontade é algo que possa ser descrito como “Queen” clássico, “A Day at the Races” funciona tão bem quanto “A Night at the Opera”. No caso de um som mais cru, se apoiando nos instrumentos clássicos, “Sheer Heart Attack” se encaixa melhor. Seguindo em frente, é possível ver como o estilo muda para lá com o Pop/Disco de “Hot Space” e retorna às origens no penúltimo álbum da formação original, “Innuendo”. Versatilidade é algo que com certeza pode ser encontrado no repertório, muitas vezes dentro de um próprio álbum. É uma qualidade aplicável à identidade do Queen como banda. De que isso importa? Bem, “Bohemian Rhapsody” escolhe justamente a música mais heterogênea, ímpar e original da banda e, talvez, de todos os tempos como título. A mais notável junção de estilos e inspirações distintas dentro de uma mesma canção de 6 minutos. No mínimo, era de se esperar uma adaptação cinematográfica próxima da visão artística da banda ao invés de uma história seguindo moldes tradicionais preguiçosamente.
Seria fácil o bastante procurar por detalhes e dizer que eles são responsáveis pelos problemas de “Bohemian Rhapsody”. Por exemplo, não é preciso ser muito detalhista para notar que a prótese dentária de Rami Malek é exagerada, maior do que os dentes de Freddie Mercury, que não eram pequenos nem grandes a ponto do ator não conseguir fechar a boca. Nem é difícil notar que nem Mercury, nem Brian May tinham olhos azuis, mas a produção não se preocupou com arranjar dois pares de lentes para eles. São detalhes, pensando no contexto geral. Incômodos, sim, mas longe de serem os culpados pelos defeitos aqui. Até porque todo o resto da caracterização é ridiculamente fiel, sem nenhuma margem para crítica.
Incomoda muito mais o fato da passagem do tempo, os 15 anos entre o começo da banda em 1970 e o “Live Aid” em 1985, serem tratados com pressa. É preciso saber que “Killer Queen” saiu em 1974 para perceber que ao menos quatro anos se passaram desde o começo da história, que em um par de cenas a banda vai de um jantar apresentando a banda à família para um contrato com a EMI para a gênese de “Bohemian Rhapsody” dentro do estúdio. E tudo isso sem mencionar que três álbuns foram lançados. A intenção de fato não é ser um documentário, um registro histórico do que aconteceu, porém sequer se pensa em usar estes detalhes como referência de passagem de tempo, o que serviria para mostrar que a banda está indo para frente, conquistando espaço e sucesso. Qualquer coisa significa muito em um começo de carreira, ao passo que a história trata o sucesso como algo que simplesmente veio.
Mas os momentos bons estão ali. Rami Malek, a despeito da caracterização falha, corresponde as expectativas e se sobressai diante do maior medo sobre “Bohemian Rhapsody”: ser fiel à capacidade única do vocalista de mexer com a audiência e energizar o ambiente onde está. Ele sobe no palco e se solta sem fazer um papel de bobão pretensioso, sem falhar em ilustrar o poder que Mercury tinha quando subia no palco. Não só isso, como sua personalidade é certeira em representar o senso de humor afiado do cantor, que não está sozinha nem mal acompanhada por outros momentos em que o resto da banda flerta com a comédia.
Presenciar o processo de criação da canção-título, por exemplo, dá um gostinho do filme excelente que “Bohemian Rhapsody” poderia ter sido. Um que focasse numa narrativa sólida e inserida dentro do contexto da banda, sem se sentir na obrigação de falar sobre todo o resto, ou numa história sobre a banda, seu trajeto e suas conquistas. Misturar os dois resulta numa história com maior foco em Freddie Mercury e ao mesmo tempo preocupada com a história da banda como grupo. O drama real vivido por Mercury se torna melodrama por conta de simplificações, enquanto os grandes momentos da banda surgem aqui e ali como se quisessem relembrar o público de que é um filme do “Queen”. Sim, as duas tramas estão interligadas e alguns dos eventos mais críticos pertencem às duas, porém isso não muda o fato de ser possível focar em uma coisa ou em outra.
Ainda falta algo. Existem pontos fortes em ambas as tramas da vida pessoal de Freddie Mercury e da carreira do “Queen”, porém o casamento delas deixa a desejar. De um lado, uma carreira de décadas é resumida a uma série de melhores momentos com as canções tocando ao fundo, cenas engraçadinhas e outras que tentam mostrar como o “Queen” tinha visão; de outro, problemas pessoais complexos relacionados à identidade pessoal, sexual e pública são criados e resolvidos em discussões e resoluções igualmente breves.
No final das contas, o problema de “Bohemian Rhapsody” não é ser um representante cinematográfico à altura do talento do “Queen”. Claro, uma adaptação audiovisual do estilo da banda — ou da diversidade deles —seria extremamente interessante, da mesma forma que “Eight Days a Week” representa a frenesi histérica das fãs beatlemaníacas e a rotina louca do próprio Fab Four. O grande porém é, por si, ser uma história rasa da banda e da vida do vocalista, por tratar uma carreira e a passagem de tempo de forma leviana e conflitos reais como eventos sem peso, resolvidos rapidamente. Comum nunca teve a ver com a banda antes e não é um filme que muda isso.