O Beatle calado. O guitarrista. O compositor ocasional. George Harrison já foi chamado de muitos nomes ao longo de sua carreira, que começou bem cedo quando em seus 15 anos ele entrava para algo que ele nunca imaginaria que seria tão grande: um grupo de cinco amigos com desejo de fazer música. Sim, cinco. E quanto ao Fab Four? O mito do quinto Beatle não era apenas uma curiosidade recorrente? Antes da formação oficial, houve dois membros diferentes e um a mais. Pete Best foi baterista antes de Ringo Starr e Stuart Sutcliffe, vocalista e baixista do grupo. Então não há motivo para achar que “George Harrison: Living in the Material World” deixa de lado esse lado da história em prol de um foco exclusivo no indivíduo. Martin Scorsese dirige 3 horas e meia sobre os “Quarrymen” e sobre Hinduísmo, sobre a história que se conhece da banda e os detalhes mais íntimos da trajetória do guitarrista dos “Beatles”.
Sim, é um documentário com praticamente a mesma duração que “Lawrence of Arabia“. E não necessariamente é um produto da megalomania de um diretor com poder de escolher a duração que quiser para um documentário. Ainda que não seja um dos mais dinâmicos por usar entrevistas e depoimentos como principal fonte de conteúdo, desinteresse ou tédio não são termos aplicáveis a “Living in the Material World”. Ao longo da história, Harrison ocupou uma posição relativamente mais secundária junto de Ringo Starr enquanto Paul McCartney e John Lennon arranjavam alguma forma de chamar mais atenção da mídia. Seja pela lendária parceria Lennon/McCartney ou por declarações a respeito da popularidade de Jesus entre jovens, eles sempre tiveram mais destaque, inclusive depois do fim da banda.
Haveria, então, tanto a ser dito sobre George Harrison? Imagino que as vidas da maioria das pessoas têm conteúdo para horas de filme se os eventos forem filtrados corretamente, então com certeza a vida do décimo primeiro melhor guitarrista de todos os tempos da Rolling Stone também tem. Mesmo assim, a narrativa não se limita a falar da vida pessoal e da carreira solo dele. “Living in the Material World” é isso e ainda um dos melhores documentários dos “Beatles” de todos os tempos. Muito do que não há em “Eight Days a Week” está nele, informações sobre os princípios da banda quando começaram a fazer sucesso em tours em Hamburgo e sobre as partes menos elegantes da história da banda. É um pacote completo.
O documentário começa como um panorama abrangente que gradualmente estreita seu foco até chegar na parte em que não há mais espaço para outras coisas além da vida do guitarrista propriamente dita. Parece simples, o caminho mais óbvio a se seguir, e é mesmo. A diferença é que não dá para chamar o abrangente de superficial e o específico de trivial. A introversão de um indivíduo não significa e nunca significou ausência de conteúdo, uma falta de palavras sendo o mesmo que falta de idéias. No mínimo, “Living in the Material World” consegue defender o argumento de que, sim, a vida de seu sujeito é relevante e rica, de que a longa duração é justificada por sempre haver alguma fase de sua vida para confrontar e contrastar a anterior e elaborar mais sobre uma pessoa que muitas vezes foi limitada a descrições como calado, introvertido, bom guitarrista e compositor secundário dentro dos “Beatles”. Ao menos é isso que se costuma falar no senso comum quando se trata de George Harrison. O mito é desconstruído e desenvolvido, humanizado e homenageado sem ser glorificado como uma maravilha dos instrumentos de corda.
Escutar as músicas de George Harrison a partir de 1966 pela primeira vez é um tanto esquisito. Suas primeiras composições mantinham o estilo do resto do álbum, feito de composições Lennon/McCartney e covers de outros artistas. “Don’t Bother Me” e “I Need You” são bons exemplos dessa primeira fase e de um começo de identidade artística, letras sobre eventos específicos do cotidiano ou sobre amor. Isso começou a mudar quando George tocou cítara em “Norwegian Wood (This Bird Has Flown)” e em 1966 lançou “Love You To”: instrumentos indianos abrem a música com rifes que conseguem ser ainda mais chamativas que as fitas invertidas de “I’m Only Sleeping” e indescritivelmente díspares da suave “Here, There And Everywhere” de McCartney. Foi ainda mais marcante em “Sgt. Peppers’ Lonely Hearts Club Band” por eu ter escutado o álbum antes de “Revolver”, seu predecessor direto. Depois da circense “Being For The Benefit Of Mr. Kite!”, um tambura abre caminho para as tablas indianas e faz o ouvinte questionar se é mesmo uma música dos “Beatles”.
Depois do estranhamento inicial e das primeiras vezes escutando “Within You, Without You”, algo começa a chamar a atenção. Enquanto a música prévia tinha inspiração em um folheto de circo encontrado por John Lennon, as letras da canção de Harrison falavam: “Estávamos falando sobre o espaço entre todos nós / E as pessoas que se escondem atrás de uma parede de ilusão / Nunca vislumbram a verdade, então é tarde demais quando se vão”. Depois de uma narrativa sobre trampolins, cavalos, anéis e barris pegando fogo, refletir sobre o amor decadente de um mundo cego certamente é algo a se notar.
Então se percebe que os instrumentos indianos são mais do que uma quebra no modelo que eles mesmos criaram e foi diversas vezes imitado durante a Invasão Britânica. Por trás da aventura musical, uma viagem dos próprios “Beatles” ao território indiano em busca de algo que eles perderam ao longo do caminho de fama e sucesso regado ao melhor das posses materiais. “Living in the Material World” não surpreendentemente mostra que a vida de George Harrison segue a mesma dinâmica dessas composições mais divergentes, inicialmente estranhas e mais tarde revelando um lado oculto sob as aparências estilisticamente subversivas. Começa introduzindo o mito conhecido do introvertido, do calado e do jovem inexperiente para mais tarde mostrar a evolução disso em um homem raramente e dificilmente compreendido. De meras caracterizações de personalidade a transcendentalismo, meditação, mantras e religião. Um novo mito nasce com o amadurecimento de George Harrison, nova fase também acompanhada de relatos e histórias acerca de si.
A mesma competência do início, quando ainda se fala em “Beatles” em vez de George Harrison, pode ser vista no resto de “Living in the Material World”. Origens são contadas e exploradas, mitos são construídos, desconstruídos, desenvolvidos e unificados pela figura de um indivíduo que representou os extremos da espiritualidade e do materialismo, um devoto e uma estrela do rock. Certamente há bastante conteúdo para alguém com fama de poucas palavras.