Ler a primeira palavra do título pode dar uma idéia sobre o assunto do filme. O resto muda isso totalmente. A República de Salò foi um governo fascista estabelecido depois da meade da Segunda Guerra Mundial, quando Benito Mussolini perdeu o apoio de grande parte do país e criou o regime no Norte da Itália como um fantoche da Alemanha Nazista. Tendo vivido durante esse período, Pier Paolo Pasolini teve a idéia de fazer um filme sobre o assunto ao mesmo tempo que também tinha interesse em adaptar “Os 120 Dias de Sodoma” de Marquês de Sade, obra que originalmente se passa na França do Século 18.
O resultado foi esta adaptação, que conta a história de quatro aristocratas com um plano muito peculiar. O Duque (Paolo Bonacelli), o Bispo (Giorgio Cataldi), o Presidente (Aldo Valetti) e o Magistrado (Umberto Paolo Quintavalle) sequestram nove garotos e nove garotas para satisfazerem prazeres e ambições sexuais diariamente. Na prática, isso significa constantes atos de violência psicológica, física e sexual em prol do prazer de seus captores. Isolados da sociedade comum, a vida daqueles rapazes e garotas muda completamente quando são tratados como objetos sexuais que podem ser usados, manipulados, ordenados, feridos, humilhados e descartados em qualquer momento.
Toda essa parte de violência sexual e depravação exacerbada vem direto da obra de Marquês de Sade, tendo nada a ver com os eventos que ocorreram de fato durante a segunda fase do regime fascista na Itália entre 1943 e 1945. Qual a ligação, então? O livro e todas suas descrições bastante específicas e repugnantes das práticas da seita possuem um caráter conotativo da opinião odiosa que o autor alimentava sobre a natureza humana. Portanto, quando a apreciação de Pier Paolo Pasolini pelo livro encontra seus sentimentos fortes por um movimento político que matou milhões, nasce uma combinação que aplica a crítica figurativa de “Os 120 Dias de Sodoma” no contexto histórico da República de Salò. Caso não pareça convincente o bastante, basta olhar para algumas das coisas que acontecem em “Salò o le 120 giornate di Sodoma” e ver que sua preposteridade é demais para ter um valor literal.
Por exemplo, só havendo uma boa razão dentro da trama para o espectador aceitar algumas das políticas instauradas pelos aristocratas. Diariamente, os jovens são agrupados numa grande sala para ouvir histórias. Quatro prostitutas velhas contam trechos de suas vidas e, em especial, aventuras sexuais marcantes. E nada de histórias eroticamente excitantes, mas de contos de uma mulher que masturbou um pênis por dinheiro pela primeira vez aos 7 anos, de outra que esteve numa encenação de velório e defecou no rosto do suposto defunto enquanto este permanecia de boca aberta sem engolir as fezes derramadas. Enquanto tais contos são compartilhados, os líderes dessa seita bizarra ficam excitados e inspirados para abusar de seus hóspedes mais que indispostos a participar. Afinal de contas, estes últimos foram raptados de suas cidades e escolhidos por sua aparência como num desfile de gado. Não tem nada de atraente para eles em desfilar nus sob o perigo de serem estuprados sem aviso enquanto o próprio estuprador é enrabado por outra pessoa, dando início a uma orgia atraente apenas para poucos.
Sim, é horrendo. A representação gráfica de Pier Paolo Pasolini, por sua vez, também não poupa o público de algumas visões desagradáveis quando os torturadores decidem ser um pouco mais criativos em suas punições. Mas é aí que está uma divergência crucial entre “Salò o le 120 giornate di Sodoma” e outros filmes do tal cinema de choque: as punições não são exatamente castigos gratuitos, atos para chocar o espectador porque sim, mas parte de uma dinâmica lógica e completamente racional para os aristocratas. O diferencial é dar uma função maior que a maravilha momentânea para cada um desses vários atos horrendos, os quais poderiam ser perfeitamente justificados pelos vilões caso houvesse chance. Se cada atitude fosse apenas uma recorrente demonstração da maldade dos vilões da história, o impacto morreria em pouco tempo e só restaria um entretenimento de vida curta.
“Salò o le 120 giornate di Sodoma” me fez ficar primeiro confuso com tudo o que acontecia, depois intrigado e curioso, na sequência. Nunca cheguei a concordar ou aceitar como válidas as atitudes dos personagens, mas queria muito saber por que diabos eles eram assim e até que ponto essa insanidade ia. A primeira cena, embora enigmática, mostra-se em completa consonância com o sucesso da narrativa justamente por mostrar aqueles quatro indivíduos assinando um manifesto de regras estruturando tudo aquilo que viriam a fazer. Como é demonstrado mais tarde, nada é desconexo de uma espinha dorsal e por isso existe este interesse com cada novo ato. Os jovens vivem com medo por não saberem o dia do amanhã ou se estarão bem na próxima meia hora, ao passo que os mestres já têm tudo planejado. Cada um dos 120 dias foi pensado como um passo no domínio absoluto da luxúria.
Talvez esse seja o efeito de um roteiro bem planejado e um diretor preparado, que consequentemente faz com que seu elenco esteja completamente confiante para interpretar seus respectivos personagens. Talvez o conhecimento de que toda profanidade exibida ainda terá uma sequência transpareça nas interpretações e consequentemente faça o espectador perceber nos atores que há algo para além do que se vê no momento. A força do elenco demonstra isso com a convicção necessária para que todo aquele circo tenebroso não seja uma galhofa que, com toda a certeza do universo, arruinaria completamente a obra e a credibilidade da crítica pretendida do autor. Felizmente, Paolo Bonacelli porta-se como um tipo de burguês intelectual e estudado em sua própria loucura, como uma autoridade imersa em sua lógica reversa que dificulta saber quão corrompido ele está. Mas curioso mesmo foi encontrar em Aldo Valetti uma versão ainda mais exagerada e deturpada do personagem de Glenn Anders em “The Lady from Shanghai“, dessa vez estando completamente em casa num filme que não rejeita desequilibrados.
A cereja do bolo é a grande contradição entre conteúdo e estética. Por um lado, não há como negar que as atitudes mostradas são completamente imorais, nojentas, violentas e perversas. Sendo assim, é interessante perceber como a aparência geral é extremamente organizada, correta e até bela. A fotografia não trabalha sozinha nessa tarefa, pois também é apoiada por um figurino que nunca poderia ser acusado de qualquer tipo de crime contra a beleza e de uma direção atenciosa na criação de composições balanceadas. Tudo sugere um suposto equilíbrio onde claramente não há, em termos psicológicos e morais. Minha única crítica à “Salò o le 120 giornate di Sodoma” è relativamente pequena, mas tem a ver com a proposta do filme como um todo. O conjunto da obra é muito bem executado em diversos aspectos, mas para quê? Sim, existe uma ponte entre uma obra clássica da literatura e a realidade tensa de um país, mas ela nunca chega a ser bem construída. Talvez Pasolini achasse que as pessoas de um país todo estavam sofrendo pelas decisões de um conjunto de homens perturbados, talvez seja outra coisa. Definitivamente é uma comparação que poderia ter tido um pouco mais de atenção.
1 comment
Infelizmente, Pasolini morreu, sua obra permanece truncada, gerando em cada de nós uma angústia, uma dúvida sobre se ele poderia superar Saĺô. Espera inútil-acredito que jamais teremos um outro Pasolini. O original não mais existe e Deus não deixou a receita pronta para gerar outro. Pasolini será para sempre insuperável