Embora não pareça imediatamente óbvio, “Manhattan” se chama assim porque Woody Allen tem sua cota de amores pela grande cidade de Nova York. Ele enxerga nela tudo que há de bom e de ruim e guarda espaço para falar dos dois em um filme que não se limita a ser uma carta de amor. Mais ou menos no estilo do ditado popular, não importa tanto se ele fala bem ou mal, pois gasta uma quantidade notável de esforço e tempo para simplesmente falar da cidade. Assim, não chega a surpreender quando uma professora da faculdade sonha com ir a Nova York na esperança de encontrar Allen em algum dos milhares de cafés. Ele já se tornou um patrimônio cultural do lugar e, sem dúvida, contribuiu muito para essa noção com este filme.
Isaac (Woody Allen) trabalha como roteirista num programa de comédia bem-sucedido que ele despreza absolutamente por não considerar inteligente, engraçado ou realizador. O pouco de satisfação que ele tem em sua vida é encontrado em sua namorada, Tracy (Mariel Hemingway), e no casal de amigos, Yale (Michael Murphy) e sua mulher. Mas nem essa parte é tão simples assim: Tracy tem apenas 17 anos e não apresenta uma perspectiva de futuro muito confiável, apesar de ser incrivelmente bem resolvida; e Yale trai sua esposa com uma mulher igualmente cativante e irritante, a qual eventualmente chama a atenção do próprio Isaac e faz sua cama de problemas.
Logicamente, “Manhattan” é frequentemente comparado com “Annie Hall” por ser a próxima produção de Allen cronologicamente, além de ser a segunda colaboração com Diane Keaton e conter vários dos elementos de comédia deste. Mas a outra parte da obra sobre uma apreciação pela cidade, sua cultura e o que tem para fazer nela costuma ser esquecida nas comparações, algo que foi visto em “Midnight in Paris” muitos anos mais tarde. Nele, o diretor expressa seu amor por Paris e seu ar com aroma do incansável espírito boêmio e dos jovens artistas apaixonados passando noites em claro tentando organizar suas mil e uma idéias. Com um pouco de nostalgia envolvida, Allen transforma a ambientação em um personagem ativamente relacionado ao protagonista por conta de tantas aventuras e figuras estarem intimamente associadas ao cenário que ocupam. Não há como separar o jeito malandro do Brasil nem a disciplina contrastada pela juventude excêntrica do Japão. Muito do que se vê aqui segue essa mesma lógica.
A personagem de Diane Keaton não é apenas uma figura carismática e bem interpretada, e sim uma representante de uma porção da sociedade que incomoda Allen. Mais ou menos como o homem falando alto na cena da fila de cinema em “Annie Hall“, ela encarna o espírito da pessoa desagradável que só sabe criticar as coisas e parece ter um apreço por opiniões polêmicas. Ou seja, a nata pseudo-intelectual que gosta de ostentar seu suposto conhecimento sobre qualquer coisa relacionada a cultura. O mesmo tipo de pessoa que ocasionalmente se encontra quando tais círculos culturais são frequentados. São situações como essa que aproximam a audiência do que Nova York quer dizer para Allen. Como o monólogo inicial de “Manhattan” transmite, ele acha que a cidade é uma metáfora para a decadência cultural de pessoas sem integridade dessensibilizadas por drogas, crime, televisão e lixo; ao mesmo tempo, também considera uma cidade que sempre existirá em preto e branco, pulsando ao som das melodias de George Gershwin. Allen começa romantizando demais, depois romantiza de menos e finalmente chega à conclusão de que aquela é sua cidade e sempre será. Mas nem precisava dizer isso. O mero empenho de contar uma típica crônica nova iorquina já dá uma boa idéia de seus sentimentos.
Se este papo de cidade como personagem parece bobagem, uma elevação de um elemento padrão a um patamar alto, ainda é completamente possível apreciar “Manhattan” pelo que oferece concretamente. Sem pensar no viés sentimental por Nova York, pode-se encontrar um filme engraçado e situações que, independente de interpretações, realmente mostram como é passar o dia na cidade, caminhando e redescobrindo alguns lugares falsamente considerados conhecidos. Nesses passeios, a aparentemente infinita capacidade de entreter de Woody Allen dá as caras na clássica persona do neurótico atrapalhado e juvenil. O mundo o assusta e, mesmo com todas as formas que encontrou de se ajustar, todo dia é uma nova oportunidade de ser pego com as calças nas mãos pelas pessoas, que involuntariamente tocam justamente nos pontos delicados. Assim como em outros filmes com esse personagem clássico, o humor flui do constante ciclo dele achar que está preparado o bastante em suas confusões mentais e ver que estava errado; uma versão da vida real de estudar 90% conteúdo e ver que os outros 10% acabaram caindo na prova. Similarmente, é fácil entrar esperando algo uma versão alternativa de “Annie Hall” e encontrar-se perdido no vai e vem das relações entre as pessoas, que mudam de opinião, gostos, paixões e objetivos com a mesma facilidade que se troca de roupa. Similaridades existem, porém não definem a identidade do filme.
Outro aspecto que chama a atenção em “Manhattan” é a fotografia e a escolha da trilha sonora para acompanhar. Todas as imagens são capturadas em preto e branco e as melodias pendem para o lado da música clássica sem o tom de composição original para o cinema, afinal todas são canções previamente lançadas por George Gershwin, renomado compositor americano do começo do século 20. Estes dois elementos em conjunto trazem um olhar subjetivo e até um pouco clichê sobre as lembranças nostálgicas. No entanto, há um toque de sinceridade e de competência por trás dessa decisão estética que deixa de lado possíveis acusações de obviedade ou coisas do tipo. A fotografia monocromática sendo dominante até meados dos Anos 50 e muitas das músicas do início do século seguindo arranjos orquestrais parecidos, é apenas natural que a imagem romantizada da cidade seja um misto entre estes dois mundos. Sem esquecer da competência de Gordon Willis, claro, na captura do horizonte urbano e seu uso de silhuetas fortalecendo o aspecto fantasioso e quase onírico desta grande dedicatória. Como esquecer da cena no banco de frente para a Ponte do Brooklyn ainda iluminada?
E no fim das contas, “Manhattan” supera o aclamado “Annie Hall“? Talvez, mas importa realmente? Ambos estão em um nível de competência similar que torna mais difícil dizer com propriedade que, sim, este é melhor do que aquele. Ao menos resta a felicidade de que ambos são grandes filmes independentemente de comparações. Em um deles, o foco recai sobre as peculiaridades que um só relacionamento pode adquirir no seu desenrolar; no outro, a dinâmica envolve mais gente, mais efemeridade e mais liquidez, como diria Zygmunt Bauman, o filósofo mais citado do momento por uma legião de decepcionados com suas vidas. Não estamos todos?