“The Silence of the Lambs” está longe de ser uma jóia pouco conhecida. Além de ser um de três filmes a ganhar os cinco grandes prêmios do Oscar — Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator, Melhor Atriz e Melhor Roteiro —ele marcou a carreira de Anthony Hopkins e garantiu a presença de Hannibal Lecter no panteão de grandes personagens do Cinema, algo que Brian Cox não conseguiu fazer cinco anos antes em “Manhunter“. Qualquer comentário sobre Hopkins sempre acaba lembrando as pessoas de sua performance inesquecível neste filme de Jonathan Demme. Outros papéis bons podem ter vindo depois, mas é de Hannibal Lecter e sua personalidade predatória, dominante e perversa que todos melhor se lembram. Como se não fosse o bastante, tamanha popularidade é acompanhada e justificada por qualidade em todo o resto da obra; desde a trama até seu desenvolvimento, personagens envolvidos, os atores por trás deles, as relações resultantes e uma representação visual exímia por parte da direção. Uma obra prima, em outras palavras.
Cinco garotas foram mortas e tiveram seus corpos encontrados em lugares completamente aleatórios, sem um padrão simples que seja para ajudar as autoridades a capturar o assassino, popularmente chamado de Buffalo Bill (Ted Levine). Jack Crawford (Scott Glenn), o chefe do FBI, já usou quase todos os seus truques, eventualmente decidindo usar como último recurso uma promissora recruta especializada em comportamento humano para falar com Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), ninguém menos que um psiquiatra que assassinou e comeu vários de seus pacientes. Dono de um intelecto formidável, ainda que possua um gosto para a maldade, Lecter mostra-se como a única chance da investigação ir para frente e impedir que outras garotas sejam assassinadas. Ameaças e prepotência já não funcionam contra um homem que não tem nada a perder. Cabe à ingenuidade intuitiva da novata Clarice Starling (Jodie Foster) tentar fazer um assassino ajudar a identificar outro.
Com isso, uma rede de relações e envolvimentos se estabelece. Há um assassino solto e um departamento sem saber o que fazer. Entre as saídas possíveis, uma mulher inexperiente tratada como objeto de desejo num mundo predominantemente masculino e outro assassino inteligentíssimo que acabou nas garras da lei, mas ainda pode ajudar por ser um mestre da percepção e da psique humana. Amplamente considerado um filme tenso, “The Silence of the Lambs” pode se gabar por deixar seu público nervoso e inquieto ao apresentar um universo em evidente desequilíbrio. Papéis trocados, esperanças em baixa e tentativas incomuns de resolver problemas urgentes criam uma situação difícil, com o espectador ocupando uma posição privilegiada e íntima de presenciar aquela saia justa e como os personagens tentam dar a volta por cima sob a sempre presente ameaça de um fracasso vergonhoso. Curiosamente, não se trata de uma situação de desespero e decisões tomadas impulsivamente. É ainda pior ver o desenrolar da situação porque o chefe do FBI, por exemplo, escolhe Clarice pensando de forma racional, assim como ela opera seguindo o que aprendeu à risca. Chega a ser mais feio ver a pessoa insistindo em seu fracasso até ser desarmada de sua convicção.
De certa forma, existe a vontade de provar uma hipótese em “The Silence of the Lambs”: ver que os planos realmente foram mal concebidos e que darão errado. É quase como ver alguém escalando um prédio sem equipamento e não conseguir evitar pensar em sua queda. Isso não significa um desejo sádico, mas o suspense operando em sua máxima performance. Mais especificamente neste caso, a polícia brinca com fogo ao depender da ajuda de um assassino que não tem nenhum motivo para gostar dela. Foi ela que tirou sua liberdade e o colocou na prisão administrada por Frederick Chilton (Anthony Heald), um médico arrogante que trata mal seus pacientes e possui mais ambição que competência. Pior ainda, a ajuda que se busca de Lecter envolve perfis psicológicos e sua análise, o que se torna especialmente complicado quando ele é psiquiatra de formação e tem uma inclinação para o crime. Enviar uma novata para lidar com um especialista na mente humana é como jogar um cordeiro num covil de lobos. Não há como não pensar no pior.
O lobo é interpretado pelo incrível Anthony Hopkins, é claro. Lecter é descrito como uma pessoa inteligentíssima, culta e de talentos notáveis, como uma memória fotográfica incrivelmente específica nos detalhes. Interessante, mas apenas uma parte da caracterização do personagem, qualidades que auxiliam na criação de sua imagem. Demonstrar estas qualidades ou, pelo menos, possibilitar que a audiência acredite que o indivíduo poderia as possuir já é outra história que, não obstante, é abordada e executada com sucesso por Hopkins. Mesmo que ele nunca seja visto desenhando, é fácil acreditar que ele viajou para vários lugares, tirou tempo para ilustrá-los e se preocupa com seu trabalho. Por trás de tudo isso há a curiosidade de que o ator ganhou o Oscar por ficar em cena por apenas 24 minutos, o que não deveria surpreender ninguém que tenha visto “The Silence of the Lambs”. No entanto, tal surpresa é resultado direto do efeito que a atuação tem sobre o espectador. Por mais que o tempo seja este realmente, cada aparição de Hannibal Lecter é forte e parece perfurar um buraco em ambos os cérebros de Clarice e da audiência, que recorda por muito tempo as palavras escolhidas cuidadosamente e pronunciadas como cortes cirúrgicos.
O cordeiro, por sua vez, é Clarice Starling. Inicialmente, não é possível afirmar com exatidão algo sobre a natureza de sua missão. Apenas as linhas gerais são repassadas a ela, que não dá nenhum indício de possível fracasso por ela se apresentar de forma segura, de certa forma. Ela parece dedicada e centrada em seus objetivos, uma aluna exemplar que faz o que deve e até um pouco mais, sempre em busca de fazer as coisas corretamente e respeitar as regras repassadas. Tudo certo, exceto pelo fato que encara uma pessoa capaz de enxergar perfeitamente estes traços já num primeiro encontro, assim como as vulnerabilidades que vêm junto. “The Silence of the Lambs” brinca com essa noção de fracasso ao colocar uma boa fatia do sucesso nas mãos de Lecter, mas não tudo. Contrariando a incompetência esperada, Clarice mostra promessa em diversas cenas de esforço e superação visíveis, quando fica evidente aquilo que cativou o assassino num primeiro momento e o levou a querer ajudá-la. Nada vem de mão beijada, e sim como pistas semi-mastigadas dadas por um mentor improvável. Por trás do terninho bem passado e do penteado impecável, Jodie Foster reveza entre traços de uma garotinha que ainda se sente despreparada para encarar a vida que escolheu e uma mulher autônoma e forte. Poderia ser uma oportunidade para criar uma protagonista no estilo tábula rasa e até um pouco passiva, porém essa possibilidade é jogada fora em prol de uma atuação que demonstra intenção, vontade e esforço, elementos que despertam outra vontade no espectador. Fraca no começo, aos poucos nasce e cresce um desejo de ver a protagonista superando suas limitações e dificuldades, uma força contra todo o medo que domina boa parte de “The Silence of the Lambs”.
O resultado desses elementos é uma história que brinca com as expectativas do espectador através de um cabo de guerra de possibilidades. Ora parece que não há como o plano de Jack Crawford dar certo, ora as coisas parecem finalmente começar a mudar conforme a protagonista aprende a voar sozinha. O diferencial que “The Silence of the Lambs” apresenta sobre o clássico modelo de duas forças concorrentes é que nunca ocorre uma dominância de uma delas ou um processo de resultados previsíveis — como deixar o mal tomar conta aos poucos até que o bem finalmente vira o jogo no clímax. Criatividade na ilustração do roteiro de Ted Tally, que adapta o livro bestseller de Thomas Harris, é a cereja no bolo colocada por Jonathan Demme. Já fazendo um trabalho sublime com o elenco, ele completa sua função como diretor ao efetivamente colocar o espectador dentro de cada cena e fazê-lo assistir cada uma em um nível de intimidade e intensidade fortíssimos. Provavelmente também foi por isso que Hannibal Lecter tornou-se tão popular: Clarice nunca esteve realmente sozinha com ele em seus encontros.