Mais um filme de gângster com Robert De Niro? Sim. E enquanto pode parecer outra história genérica de máfia estrelada por um ator já conhecido no gênero, essa primeira impressão é completamente falsa. Nunca esperei que “Once Upon a Time in America” pudesse estar no mesmo patamar dos gigantes como “The Godfather” e menos ainda que fosse superá-los. Numa primeira vista, o único aspecto superior é a duração, que beira as 4 horas no corte original e ultrapassa na versão restaurada. Pode assustar e não ser muito convidativo, mas é uma experiência que, assim como os melhores filmes longos, passa sem deixar um traço de cansaço. Sobra apenas a surpresa de conseguirem conservar a fluidez e a imersão em uma duração tão longa. Mas o que torna este longa diferente dos outros? Essas duas qualidades por si não fazem obras primas sozinhas.
Depois de 35 anos longe das pessoas com quem viveu e da cidade onde morou, David “Noodles” Aaronson (Robert De Niro) faz um retorno inusitado. No passado, ele foi um de vários garotos de família judia que foi para a América em busca de novas perspectivas num país que prometia prosperidade aos dispostos a conquistá-la. Seu sucesso, como o de outros imigrantes, veio com o crime. De pequenos golpes e roubos até operações complexas, Noodles e seus amigos conquistaram a boa vida e assim viveram por um tempo. Mas algo o afastou dali e algo o trouxe de volta. Em busca de respostas, ele se vê relembrando da vida que deixou para trás.
Contar uma história íntima nos detalhes e épica no escopo abraça a vida em duas esferas igualmente impactantes. Por um lado, há a proximidade das lembranças individuais: um acontecimento marcante na infância, que por algum motivo continuou na memória ao longo dos anos. Uma garota que depois de muito mostrar-se interessada simplesmente mudou de idéia e deixou decepção em seu caminho; ou um passeio que tinha tudo para ser medíocre como qualquer outro e foi uma experiência memorável. Pode ser algo agradável ou incômodo, o importante é ser marcante. Tais recordações surgem vez ou outra sem que haja necessariamente um gatilho, mas há também outro jeito de reviver o passado: revendo os eventos como partes de uma grande retrospectiva. Neste caso, o significado de cada acontecimento vai além de algo pontual, pois torna-se pedaço de um trajeto que engloba décadas de acontecimentos pequenos, supostamente irrelevantes e até mesmo os importantes. Eles próprios e sua relação semântica podem ser analisados na posterioridade como fatores que levaram a pessoa a ser quem ela é. Com isso em mente, “Once Upon a Time in America” não se trata apenas de contar uma história centrada em fatos individuais, mas de mostrar estrategicamente quais deles foram importantes de alguma forma para a situação do protagonista. Neste ponto, “Once Upon a Time in America” é incomparável.
Se escopo for considerado meramente por quantos anos são explorados, “The Godfather Part II” estaria muito próximo a “Once Upon a Time in America” por contar a história de uma mesma família ao longo de cerca de 50 anos. O longa de Francis Ford Coppola começa com o jovem Vito Andolini vendo sua família ser assassinada e logo mais fugindo para os Estados Unidos; continua com seus primeiros anos da idade adulta; e ainda conta com seções de Michael Corleone cuidando dos negócios como Don. Mesmo juntando o primeiro filme para completar a cronologia, continua sendo uma abordagem diferente dessa de Sergio Leone. Condensando os saltos na cronologia em uma mesma narrativa e usando-os para seu benefício, o longa-metragem inicia suas 4 horas apresentando uma série de conflitos sem cerimônia. Há algo errado, mas não se sabe exatamente o que ou por quê. Tudo começa com um mistério seguido de um retorno para tão longe que é impossível chamar de mero flashback ou acusá-lo de ser um tapa-buraco. Ao explorar o passado dos personagens, a história preenche os vazios prévios e, mais do que isso, faz o espectador se importar com o que é apresentado. As pancadas das reviravoltas eventuais são sentidas como um ataque pessoal a alguém próximo, atingindo o ápice de sua eficiência por serem tão bem pensadas quanto bem encaixadas na vida de Noodles.
Embora seja classificado como um filme de gângster e possua uma trama que mantém o espectador engajado com acontecimentos que viram tudo ao avesso, “Once Upon a Time in America” é realmente o conto de um grupo de amigos ao longo de cerca de 50 anos. Poderia ser um caso de história focada em personagem por tratar de períodos diferentes da vida, mas não é possível caracterizar exclusivamente dessa forma porque, como disse anteriormente, o enredo é carregado de eventos-chave que constituem uma corrente lógica de eventos. Este é um exemplo que borra os limites entre estes supostos extremos, pois ao mesmo tempo que as viradas são definidas por mudanças objetivas — como assassinatos, tomadas de poder, formação de alianças etc — praticamente todas elas dependem das relações entre personagens e do quanto a audiência acredita nelas. Estes momentos, em contrapartida, são caracterizados por atitudes muito menores, como o jeito tipicamente infantil como crianças fazem amigos e criam grupos. Toda a maravilha da história provém de uma combinação orgânica entre motivações subliminares, o caráter percebido de cada personagem e a causalidade entre eventos. Não dá para atribuir o sucesso a um fator ou medir qual deles tem maior influência. Tudo funciona como uma grande e unidade sintônica.
Além de flertar com absurdo e o inaceitável, antecipando reações da audiência, o enredo também é compromissado com mostrar cada fase da vida de forma genuína, respeitando as particularidades de cada período. Um amigo que assistiu comigo procurava margem para criticar “Once Upon a Time in America” na primeira chance, precipitando-se ao achar que algo aconteceria sendo que outro caminho acabava sendo tomado. Em certo momento, ele julgou que um personagem era novo demais para estar fazendo algo que estava prestes a fazer, praticamente acusando o filme de exagerar ou retratar errado a juventude. Pois bem, como se soubesse que fariam julgamentos desse tipo, o filme mostra na sequência que não guarda espaço para nada que seja falso, incompatível ou inadequado. A proposta é contar uma história de vida que, por acaso, envolve também o submundo dos mafiosos. Estes, por sua vez, até tentam conservar sua imagem com ternos caros e anéis de ouro nos dedos, mas continuam sendo seres humanos que passam pelas fases da vida como qualquer outro.
Representar as peculiaridades de cada estágio da vida deve ser uma tarefa difícil e mais ainda para quem não passou por todas elas. Um jovem, por mais criativo que seja, dificilmente terá uma idéia de velhice melhor do que quando viver a terceira idade na própria pele. Acredito que uma parte importante do êxito de Sergio Leone tenha a ver com o fato de “Once Upon a Time in America” ter sido seu último filme. Ele estava exatamente na mesma faixa etária que seus personagens, o que talvez tenha lhe dado um pouco mais de propriedade para dirigir seu elenco e indicar o melhor caminho a ser seguido; já tendo obviamente passado pela juventude e pelos primeiros anos da idade adulta para garantir experiência nestes estágios. Por trás de uma grande atuação há um grande ator e um grande diretor. Mas nenhum sucesso realmente memorável conta com apenas uma das partes. Se Noodles é apresentado como uma pessoa relativamente única em cada momento de sua vida, é um sucesso de ambos Robert De Niro e Sergio Leone.
Pontualmente, pode-se dizer que é louvável contar com performances universalmente competentes e com atores jovens similares às suas contrapartes adultas. Scott Schutzman Tiler e Rusty Jacobs protagonizam o começo de uma amizade que transcende décadas e até faz o espectador esquecer que gangsteres estão envolvidos. Além disso, com eles manifesta-se o tema central da ambição e seu lugar na vida do indivíduo. Numa criança, por exemplo, ela existe sob uma faceta juvenil e até inocente, misturando-se um pouco com a necessidade de prazer imediato de um bebê e a curiosidade de um jovem de conhecer o mundo. Mais tarde, é possível ver o mesmo sentimento sem estes filtros, existindo de uma forma um tanto mais calculista e crua. Enquanto um personagem demonstra esta segunda forma claramente em uma idade mais avançada, outro segue um caminho diferente e enxerga seus próprios atos como razões concretas para ser diferente, reagindo a esta ambição com uma decepção construída com muito tempo de reflexão e arrependimento. Quando o tempo passa e algo muda sem perder sua essência, quando Robert De Niro e James Woods entram em cena e continuam o ótimo trabalho de Tiler e Jacobs, a influência do diretor é melhor notada. Assim como uma pessoa pode relembrar de vida considerando os fatos num contexto mais amplo, as passagens temporais, súbitas em termos de imagem, tornam-se fluídas com uma direção que leva os atores a conservar a alma do personagem em um novo contexto.
Quanto à fotografia, não se pode negligenciar seu trabalho sutil de dar uma face antológica às imagens. “Once Upon a Time in America” apresenta-se em tons leves de sépia que, como esperado, remetem a algo antigo e pertencente ao passado. No entanto, não é algo que pende para o óbvio e deixa suas intenções na cara do espectador, que já não olharia para as imagens com a mesma empolgação. Tal sutileza também se encontra na trilha sonora de Ennio Morricone, a qual tem uma presença notável como as flautas icônicas de “Três Homens em Conflito” sem a mesma repetição e agressividade. Estes dois pontos, assim como a maioria dos aspectos de “Once Upon a Time in America” trazem mais que sutileza por si, pois, acima de tudo, ostentam a competência necessária para encaixar naturalmente toda e qualquer empreitada com o resto da obra. Sempre que viajo em minhas lembranças buscando “Once Upon a Time in America”, não encontro Robert De Niro tomando a frente como uma estrela em meio a coadjuvantes ou a trama sendo considerada uma inteligente sequência de fatos impossíveis de serem antecipados. Penso muito mais sobre como todos os aspectos conversam entre si, como nada está sozinho e como “Once Upon a Time in America” é definitivamente o melhor filme de todos os tempos.
4 comments
“Once Upon a Time in America” é definitivamente o melhor filme de todos os tempos.
Me arrepiei quando li isso!
Adoro esse filme e a nostalgia que ele carrega. A história de amizade e de uma vida toda é intensa e deixa marcas em quem realmente sente o filme…
Pra mim o melhor e muito injustiçado.
Foi uma ótima leitura, parabéns!
Valeu, Danilo! Difícil honrar essa obra-prima com palavras, mas a gente tenta. Bom saber que ao menos um pouco eu consegui! Abraço
E ainda há o que ñ foi dito, mas fica subentendido. Como sutis vinganças contra quem se ama, que aparentemente são de pouca importância pelo tempo transpassado, mas machucam profundamente a alma.
Parabéns Caio Bogoni, escreveu um belo texto e realmente honrou este épico exuberante e muito injustiçado, porque quase não aparece em listas dos 10 maiores filmes de todos os tempos. Eu ainda anão assisti a Edição restaurada. Vou adquiri-la, preciso tê-la, inclusive já pesquisei e vem com dois discos. Eu tenho a versão de 229min. que já deve ser bem melhor do que a tal edição assassina, que graças a Deus nunca vi. Na minha humilde opinião Sergio Leone é um diretor diferenciado demais e grito isso aos quatro cantos desde que assisti a trilogia dos dólares, lá pelo início da década de 1980 e eu era ainda bem novo. Percebi de imediato que os filmes de Leone tinham uma textura bem diferente da dos filme de outros grandes diretores. No entanto para afirmar se está no nível, ou se é até mesmo superior a O Poderoso Chefão, preciso assistir a versão restaurada.