Na maioria das vezes, se eu escutar alguém dizer que tal filme é bonito, provavelmente pensaria duas vezes antes de acreditar completamente. Bonito, divertido, legal e triste são adjetivos tão comuns e tão utilizados popularmente que é difícil levá-los a sério. Minha mãe é uma pessoa que facilmente assistiria um filme do Rob Schneider e diria engraçado, mesmo que fosse apenas uma obra levemente simpática. Alternativamente, veria o pior filme de ação da atualidade e diria que é legal só porque ficou entretida o bastante para não dormir. Mesmo com o estigma do uso leviano, acredito que bonito seja o adjetivo mais apropriado para “Morangos Silvestres”. É uma sublime ocasião do cinema entrando debaixo da pele de seu personagem e externalizando aquilo que fica tanto tempo escondido.
O Doutor Isak Borg (Victor Sjöström) está com 78 anos. Há pouco tempo, ele foi convidado por uma universidade para receber uma homenagem importante por conta de sua extensa carreira a favor da medicina e da ciência. Mas depois de tanto acreditar que dedicou sua vida a uma causa nobre, Isak começa a questionar se todo esse esforço não foi feito em prol de outras razões. Ele decide pegar o carro na manhã da cerimônia e dirigir despreocupado até o evento, encontrando no caminho algumas figuras que o lembram de seu passado distante e de seu presente nebuloso.
A vida de Isak já passou, pelo menos a maior parte dela. A juventude ficou para trás; a vida adulta veio e já foi. Com as grandes decisões tomadas, resta a ele refletir sobre suas consequências e se elas constituíram a popular coisa certa a se fazer. Até mesmo o prêmio que ele está para receber, uma honra concedida por uma respeitada universidade e a qual jovens anseiam a vida toda, é apenas um detalhe diante de tantas outras coisas que passaram antes. Sua vida definitivamente não orbita em torno deste prêmio e ele não mostra-se muito empolgado para isto. Dessa forma, o que resta para dizer? Há conteúdo para “Morangos Silvestres” explorar se nem o protagonista está entusiasmado pelo próprio futuro? Com certeza. Mais do que a maioria dos casos, até mais do que “Easy Rider“, a jornada importa mais do que a destinação.
Isak pretendia partir sozinho, mas acaba sendo acompanhado por sua nora, Marianne (Ingrid Thulin). Ela recentemente pediu para passar uns dias na casa do sogro, mas decide aproveitar a oportunidade para voltar para seu lar. Os dois nunca se deram particularmente bem nem chegaram a ter algum tipo de desavença, tendo uma relação morna em todos os sentidos. No entanto, sua conversa dentro do carro tem tudo menos essa qualidade. Eles falam sobre características pessoais, sobre índole e sobre defeitos, abordam todas as coisas que a maioria das conversas sequer chega perto de esbarrar e, assim, evitam a mediocridade do papo furado. “Morangos Silvestres” não está interessado em falar sobre o trânsito na estrada e sobre o clima, muito menos em mostrar seus personagens fingindo apreço quando o espectador não tem propriedade para diferenciar o fingimento de qualidades reais. Ingmar Bergman retira as camadas envoltórias da personalidade para aproximar seus personagens da essência de suas personalidades, abrindo espaço entre falsidade e revelando o que jaz entre tantas conversas insípidas.
O foco está quase completamente no passado do protagonista. Sendo assim, poderia ser uma porta escancarada para flashbacks expositivos e recorrentes sobre a multidão de coisas passando na cabeça de Isak. Suas lembranças são a matéria prima de “Morangos Silvestres” e, não obstante, passa muito longe de ser narrativamente pobre. Ao contrário de trabalhos que usam o passado para explicar e justificar fatos obscuros do presente, aqui ele tem tanta importância quanto, ou mais, do que o presente. Melhor dizendo, eles se fundem tão naturalmente que mal dá para dizer que a história está dando saltos entre presente e passado. Isak dá uma pausa em sua viagem para visitar a casa onde passou seus primeiros anos de vida. Lá, ele viveu amores e os perdeu, presenciou coisas que nunca pensou que o colocariam para pensar em sua velhice. Partes importantes e constituintes de quem ele é estão naquela casa de verão; nas clareiras e na água do lago, na sombra das árvores e na varanda. Mas algo mudou. Quando ele senta-se na grama e vê uma prima por quem nutria sentimentos, ele ainda é um velho de 78 anos.
Se a realidade percebida nunca é vista em sua essência, como pode uma memória ser pura? Cada relembrança traz uma pequena distorção, como um telefone sem fio modificando levemente a mensagem até que o último indivíduo entenda um significado completamente diferente daquele pretendido pelo comunicador original. “Morangos Silvestres” reconhece essa qualidade da psique humana e a usa a favor de sua história ao colocar um velho nas memórias de um jovem. Os fatos são lembrados como oportunidades perdidas e decisões infelizes, precursores de fases boas ou ruins da vida. Com o tempo, significados são atribuídos a coisas que tiveram um impacto diferente em sua época. Por esta razão, as frequentes visitas ao passado não são necessariamente retornos, mas uma revisita a uma versão atualizada e condizente com a nova maturidade do protagonista.
Como ele próprio diz, ele tem uma série de sonhos estranhos que parecem dizer algo que ele não ouviria se estivesse acordado. Curioso. Mal dá para dizer exatamente como os sentidos funcionam quando o corpo está adormecido e, mesmo assim, as coisas vividas durante um sonho são muito instigantes. A vida onírica parece saber mais sobre a vida do que a própria pessoa. Imagens ligadas caoticamente e experienciadas de forma bizarra. Como elas podem saber de alguma coisa? Como elas podem ter significado narrativo num filme? Nas mãos certas, tudo se ajusta e se explica. Ingmar Bergman transforma o passado e o mundo fantástico dos sonhos em algo compreensível pelo espectador, que comunica um sentido conectável à história sem exacerbar a ponte construída de forma ofensiva à audiência. Mesmo que as coisas não pareçam imediatamente claras, elas passam a fazer sentido conforme se conhece melhor o homem que Isak Borg é, ao contrário de quem ele diz ser. De forma parecida, “Morangos Silvestres” expõe o porquê de seu título mesmo que seja confuso para quem ainda não assistiu.
No final das contas, “Morangos Silvestres” dá uma incrivelmente longa e sinuosa jornada para realizar uma função bem simples: enviar seu protagonista em um passeio contemplativo pela via das memórias. O que ele encontra lá nem sempre faz sentido ou é agradável, mas sempre tem algo a dizer sobre sua situação atual. Visitar um local da infância é mais do que um jeito de dar plano de fundo ao personagem, pois quaisquer pedaços do passado ou da fantasia têm seu impacto na situação presente. Assim como as lembranças de Isak Borg, o mundo cinematográfico de Ingmar Bergman sempre tem seus porquês por trás de si. Podem não ser claros num primeiro momento, mas eles estão lá e não são menos importantes por isso.