Entre Setembros Amarelos, Outubros Rosas, Novembros Azuis e Dezembros Laranjas, pode-se notar uma claro movimento social de conscientização sobre algumas condições humanas específicas. Várias delas foram negligenciadas no passado e só agora, com campanhas e uma consciência social diferente, elas têm sido vistas de um modo mais sério. A cultura arranjou seu jeito de não ficar para trás: “To the Bone” é mais uma produção Netflix sobre uma patologia psicológica, um longa metragem para acompanhar o seriado “13 Reasons Why”. Dessa vez falando sobre transtornos alimentares — a anorexia, especificamente — este longa traz alguns pontos de vista interessante sobre o fenômeno e seu tratamento, porém deixa a desejar bastante na hora de concluir algo sobre tudo o que explora.
Ellen (Lily Collins) acabou de ser convidada a se retirar de uma clínica de tratamento por conta de seu mau comportamento. Ela tem anorexia e sua família já não sabe ao certo o que fazer diante de tal situação; com alguns chegando a admitir que ela está em processo de morte. Como um tipo de última solução, a família de Ellen busca a ajuda de um doutor respeitado na área de transtornos alimentares. Seus métodos não são exatamente tradicionais e exigem dedicação e cooperação do paciente para que funcionem, especialmente porque este deve passar dia e noite em uma casa com outras pessoas que sofrem de condições similares.
O grande problema deste filme — e de todos que falam sobre seres humanos, praticamente — é representar a diversidade de esferas da existência humana. Ou seja, externalizar o que as pessoas pensam, fazem e sentem, assim como a forma como isto as torna quem elas são. Mesmo as pessoas consideradas desinteressantes ou superficiais possuem muito sobre si que a maioria das pessoas nunca verá. Como um contador de histórias, o cineasta deve buscar aproximar-se o máximo possível desta verdade existencial, pois as pessoas possuem a capacidade de sentir quando a representação é verdadeira ou não. Quando se fala numa condição que envolve todas as idiossincrasias de uma pessoa considerada normal e muitas outras exclusivas, a situação complica consideravelmente. “To the Bone” encara este desafio com sucesso até certo ponto, então chega um momento em que simplesmente encerra seu progresso. Neste sentido, ruim não é um adjetivo preciso para descrever este filme. Incompleto encaixa-se melhor.
A história começa abordando um aspecto que impressiona por ser tão negligenciado: a família. Quando alguém sofre de uma condição complexa, seja ela qual for, as pessoas em volta são afetadas. Isso não é apontar culpa ou criticar o indivíduo com a patologia por atrapalhar os outros, longe disso, trata-se de uma questão de mudança de rotina, de foco, de preocupações. Uma mãe que vê sua filha contando quantas calorias faltam para sua morte comove-se com o que acontece. Não é uma situação agradável de se viver, com certeza. Portanto, explorar este aspecto pode ser uma forma de aprofundar-se no assunto caso a família tenha alguma relevância para o arco da personagem principal. “To the Bone” explora este aspecto inteligentemente: tanto o ponto de vista de Ellen sobre a família como o contrário são exibidos. Eles tem suas angústias e opiniões sobre uma garota que não consegue fazer o básico: colocar comida na boca, mastigar e engolir. Ela, por outro lado, sente-se isolada e incompreendida pelos próprios pais, as que pessoas que deveriam conhecê-la melhor que todo mundo. Resta recorrer a ajuda profissional de alguém de fora que, de alguma forma, sabe mais sobre a situação que pessoas íntimas.
Na clínica do doutor, um novo pedaço da realidade é explorado. Ellen convive com outras pessoas que compartilham vários sintomas e, ao mesmo tempo, não é igual elas. Cada pessoa tem seus próprios esqueletos no armário e peculiaridades, formas diferentes de lidar com uma mesma situação. Interessante, mas não diria que é o ponto alto deste ambiemte. O médico responsável, William Beckham (Keanu Reeves), introduz uma abordagem firme e direta no tratamento de Ellen. Se, por um lado, o dia a dia dela logo perde a graça e começa a tomar caminhos desinteressantes, as cenas entre médico e paciente nunca desapontam, apesar de serem breves. Cria-se um curioso e ambivalente contraste entre dois tipos de situações: um deles carece do calor de um lar e ostenta a banalidade constante do cotidiano, resultando em um certo tipo de comodidade; o outro é um teste de enfrentamento da realidade com toda sua carga de desconforto. Sem entrar em méritos de dizer o que é relevante ou não para o tratamento, é possível notar uma diferença de qualidade, propriamente dita, entres estes dois pólos. As cenas no consultório funcionam melhor num espectro exploratório da anorexia e narrativamente também por conta de serem mais instigantes que um relacionamento adolescente.
Sendo justo, é possível apontar pontos positivos, possivelmente até a intenção do roteirista em explorar um romance. Inserir um relacionamento em meio a um tratamento clínico para anorexia pode ser encarado como uma forma de humanizar o processo e mostrar que ainda há espaço para a vida normal em uma situação cheia de particularidades. Mesmo com problemas alimentares, remédios envolvidos e outras pessoas doentes num mesmo lugar, é possível ter um pouco de intimidade e aspirações românticas. O único problema é que “To the Bone” perde muito tempo em cima disso para transmitir uma mensagem relativamente simples. Não há muito desenvolvimento do romance ou um impacto perceptível dele na situação geral da protagonista. Este núcleo, junto de todo o resto da história, são interrompidos prematuramente e concluídos sem mais. É como se tivesse chegado a hora de acabar o filme e a história ainda não estivesse pronta para isso. De uma hora para outra, tudo é jogado para o alto e finalizado com pressa, deixando-me com um sentimento de que ainda havia mais a ser dito.
“To the Bone” não é uma história completa a ponto de abordar os vários aspectos da anorexia em sua totalidade, expressando uma imagem abrangente da doença para uma audiência que pode conhecer pouco ou nada sobre ela. Seria ótimo se fosse, pois, além de informativo, seria um desenvolvimento que faz uma ponte entre aspectos de personalidade muito íntimos e o cerne patológico da anorexia. No entanto, não considero “To the Bone” menos por isso. Seu grande pecado é perder-se no meio do caminho ao dar atenção a aspectos pouco relevantes e, de uma hora para outra, concluir tudo sem que a hora da conclusão tivesse chegado.
3 comments
A forma correta ali no final é “conclusão tivesse chegado” e não “conclusão tivesse chego”. O verbo “chegar” não é um verbo abundante. Sua única forma correta no particípio é “chegado”. Mesmo se fosse um verbo abundante, a colocação ainda estaria incorreta pois nesses verbos, quando são precedidos de “ter” ou “haver” a forma correta seria a regular (como no caso de “eu teria aceitado.”). A forma irregular aplica-se a precedência dos verbos “ser” e “estar”. Por exemplo: “eu seria aceito.”
Cada dia aprendendo uma coisa nova, não é mesmo? Obrigado pela correção!
Muito bom Caio! Eu assisti e fiquei com a mesma impressão! Mas não teria essa habilidade para colocar em palavras que vc demonstra! Muito bom mesmo!