“Os Guarda-Chuvas do Amor” é um filme enganoso. Nos pôsteres, guarda-chuvas coloridos e um casal apaixonado ilustram o mundo cheio de magia de pessoas que vivem e respiram o amor. O próprio longa é uma grande amplificação de tudo isso. Raramente a vida é tão cheia de cor como neste musical de Jacques Demy, no qual tons básicos foram aparentemente banidos e tudo possui certa excentricidade. Quando se está apaixonado, sobra motivação para fazer as coisas grandes, há empolgação até para as pequenas e tudo parece estar mais animado, dominado por um otimismo prazeroso demais para que se considere sua efemeridade. Demy claramente enxerga que, para todo pico de felicidade, há um contraponto menos elegante e assegura-se de que o espectador não esqueça disso. Acima de tudo, ele reconhece o valor de existir dois lados e os representa com o mesmo carinho.
Repleta de charme, a cidadezinha de Cherbourg brilha um pouco mais forte com a paixão entre Guy (Nino Castelnuovo) e Geneviève (Catherine Deneuve). Os dois se amam demais para perder tempo, só querem se casar e concretizar os sentimentos que compartilham apesar de serem jovens. A mãe da garota complica a situação por se colocar contra a união dos dois e, para a maior infelicidade deles, Guy é convocado pelo exército para servir na Guerra da Argélia. Finalmente separados por forças maiores, os dois prometem continuar se amando, mas claramente não será fácil.
Minha vontade de assistir a “Os Guarda-Chuvas do Amor” surgiu principalmente por ele ser uma das grandes influências de “La La Land“, um de meus musicais preferidos. A estética do filme de Damien Chazelle foi um tanto única para mim, contando com um Design de Produção centrado em cores vibrantes para representar quaisquer elementos em cena. Uma jantar num apartamento, por exemplo, tem dois tons predominantes: a luz laranja das velas na mesa, sendo a fonte principal de iluminação, e todo o resto num tom notavelmente verde. Outra cena relativamente banal aproveita para pintar a parede da rua num rosa suave e os detalhes do cenário em púrpura, com o carro do rapaz em vermelho e o vestido da garota se destacando em branco. De onde tudo isso vem? Não tenho dúvidas de que o musical de Jacques Demy é uma aposta segura;
Não há espaço para tons mornos e sem sal em “Os Guarda-Chuvas do Amor”. Mesmo os ambientes mais simplistas possuem alguma decoração que o tire da mediocridade e o insira dentro da identidade artística do resto da obra. Nem Guy, nem Geneviève são ricos. Acontece justamente o oposto: ele é um rapaz de vida humilde, morando num apartamento pequeno com a madrinha e trabalhando como mecânico; ao passo que ela passa por dificuldades financeiras na loja de guarda-chuvas de sua mãe. Mesmo assim, nenhum desses contextos foge do padrão colorido idealizado pelo diretor. As paredes do prédio de Guy estão cheias de rachaduras, com a tinta descascando em vários pedaços e claramente sem cuidado apropriado há muito tempo. Nada disso impede que os pedaços intocados pela degradação estejam num vivo verde-limão ou que o figurino possua tons chamativos. Curiosamente, isso não vale apenas de valor estético ou superficial, embora funcione espetacularmente bem nesse aspecto. A linguagem cinematográfica construída pelo diretor utiliza as cores como ferramentas narrativas, seja para o simples destaque dos protagonistas no ambiente, para a identificação de personagens relevantes ou até para caracterizar personalidade e sentimentos de cada um.
Ver a estética utilizada de forma inteligente já foi uma surpresa por si, mas não foi a maior delas. Para quem buscou “Os Guarda-Chuvas do Amor” porque era o filme coloridinho que inspirou “La La Land”, devo dizer que encontrei muito mais do que isso. A imagem de mundo criada é exatamente o que se espera ao ver tantas cores: otimista, belo, apaixonante, convidativo para uma vida facilmente aproveitada apenas com prazeres modestos. A Cherbourg de Jacques Demy parece o lugar perfeito para desacelerar o ritmo e enxergar as coisas sem pensar que pode haver algo melhor, para deixar de lado a ambição e tocar uma lojinha modesta pelo simples prazer viver com a cabeça fria. É um cenário potente, principalmente por não ser exagerado ou pretensioso em sua execução, mas não é invulnerável perante as ambições narrativas do diretor. Se os personagens nada mais querem além de compartilhar uma vida juntos e casar-se o mais cedo possível, não pode-se dizer o mesmo da história. Ela tem pretensões grandes e nenhum problema de desconstruir toda a magia que criou com tanto carinho.
Um dos princípios narrativos da maioria das histórias é ter altos e baixos. Eles surgem em doses pequenas, como obstáculos no caminho, até darem as caras de uma forma intensa como nunca: um desafio que coloca em risco o que foi construído até então. O momento em que o herói dos filmes de ação é capturado pelo inimigo; ou quando o atleta sofre uma lesão que pode comprometer sua participação no campeonato para o qual treinou muito tempo. Há um porém apenas: Hollywood condicionou o espectador a esperar que tudo dê certo logo na sequência, que o clímax seja apenas um susto. Tipicamente, o herói dá um jeito de escapar de sua prisão e o atleta inesperadamente se recupera a tempo. Todas essas são coisas das quais eu não posso acusar “Os Guarda-Chuvas do Amor”.
O universo colorido dá uma idéia enganosa sobre o otimismo do diretor perante a história, sugerindo inicialmente que tudo talvez seja tão mágico que é impossível algo dar realmente errado. E mesmo se der, é fácil imaginar que alguma mudança de última hora coloque as coisas no lugar de novo. A firmeza da história para com suas decisões foi inesperada porque nunca achei que veria uma dose pungente de realidade em um musical com todos os indícios de ser uma experiência descompromissada com verdades muitas vezes duras de aceitar. De todas as qualidades de “Os Guarda-Chuvas do Amor”, não tenho dúvidas que esta é a mais marcante porque depois do fim da sessão ainda estava pasmo com a ousadia do filme em não ceder ao clichê. Novamente, as cores e o design funcionam como algo mais do que elementos na construção de imagens belas, são a principal forma de manipular a audiência e alimentá-la com expectativas falsas.
Mas esta surpresa não foi a única coisa que me acompanhou para fora da sessão quando esta acabou. Hoje, alguns dias após o fim da sessão, ainda estou assoviando várias das melodias de e automaticamente revivendo alguns sentimentos de uma forma ainda mais potente que da primeira vez, pois relembro deles considerando o contexto inteiro da obra e como “Os Guarda-Chuvas do Amor” leva o espectador por espectros variados do sentimentalismo. Há variação e fluidez na trilha sonora, praticamente uma melodia contínua com pausas esporádicas a fim de não tornar a experiência esmagadora, carregada demais com canção. Sim, este é um musical cantado do início ao fim, com cada linha de diálogo servindo de letras de uma canção. Julgando a partir de minha experiência com “Les Misérables“, não é o meu formato preferido, mas existem algumas diferenças elementares para que “Os Guarda-Chuvas do Amor” seja uma experiência superior. Em primeiro lugar, é um filme mais curto, tendo menos tempo para cansar do estilo. Além do mais, todo o diálogo é encaixado muito naturalmente nas incríveis composições de Michel Legrand. As canções falam por si, enquanto os diálogos banais são tão essencialmente simples que não precisam de uma pronúncia dramática, o que os torna acompanhamentos orgânicos à trilha no fundo. Ainda não é um formato que aprecio, mas ao menos nunca chega a ser forçado.
Até ver “La La Land“, não conhecia o trabalho de Jacques Demy e não fazia idéia de que ele era tão influente. Depois de assistir ao seu musical, vencedor da Palma de Ouro de em 1964 e indicado a 4 Oscars, posso dizer que entendo perfeitamente porque ele permanece como uma influência forte ainda em 2016. Dá para identificar que algumas das melhores qualidades do longa de Damien Chazelle provém daqui, indo além dos cenários coloridos ao emprestar também a ousadia narrativa vista aqui.