Parece cada vez claro que Akira Kurosawa é um cineasta amado por fãs de anime em geral. Mesmo que o material das histórias não seja exatamente o mesmo — ou perto disso, considerando alguns animes — as produções provêm da mesma cultura. Por vezes é possível ver os mesmos assuntos e até as mesmas histórias contadas de maneiras muito diferentes, com apenas a assinatura estética e inspirações culturais estabelecendo a ponte entre as duas mídias. Efetivamente, acredito que este seja parte do motivo dos apreciadores de animações japonesas gostarem do trabalho de Kurosawa, a outra sendo a aptidão do próprio como diretor. “Ran” transcende o folclore oriental ao trazer a tragédia familiar de “Rei Lear” a um tempo dominado por tradições milenares. Legados culturais são colocados à prova pelos sentimentos mais naturalmente humanos; o respeito por costumes cristalizados ao longo de gerações contra a tentação da cobiça individual.
Hidetora Ichimonji (Tatsuya Nakadai) é o grande lorde de um império conquistado sobre os cadáveres dos inimigos e as brasas dos seus castelos. Com uma posição bem consolidada, ele aproveita os frutos de suas vitórias e continua sendo uma figura de respeito. Mas Hidetora está em seus 70 anos, já não tem mais o ímpeto que um dia eliminou todos os traços de coragem em seus oponentes. Chega a hora de passar a tocha para frente. Seu filho mais velho, Taro (Akira Terao), recebe as incumbências de lorde e a cavalaria; a Jiro (Jinpach Nezu), o do meio, são deixadas terras menores. Saburo (Daisuke Ryû), o filho mais jovem, não recebe nada e é banido do feudo por afrontar explicitamente a fé que o pai deposita nos outros filhos. Hidetora só não esperava que tais declamações pudessem não ser infundadas como pensava.
Comentei sobre os fãs de animes porque ouvi muitos deles falando especialmente bem de Akira Kurosawa quando o assunto era cinema— além de elogiar as obras do Estúdio Ghibli, naturalmente. Tanta empolgação me levou a estrear a filmografia do cineasta com “Os Sete Samurais“. Três horas e meia de duração, refeito nos EUA como o popular faroeste “Sete Homens e Um Destino” e, dependendo a quem se pergunta, a obra prima de Kurosawa. Foi um bom filme, sem dúvida, mas devo dizer que esperava um pouco mais depois de tantos elogios. Talvez estivesse esperando algo como “Ran”: uma vigorosa coletânea de emoções e sentimentos que deixa o espectador sem saber por onde começar a elogiar. Achar palavras para uma descrição digna não foi fácil ao fim da sessão. A fórmula do sucesso envolve uma relação íntima de muitos elementos para simplesmente dizer que a história é boa, que a ação é bem capturada e que a caracterização geral é impecável. Não há como falar da história sem comentar sobre o grande caminho que o enredo percorre antes de chegar numa conclusão devastadora. Também não é possível falar do enredo sem considerar as nuances subjacentes que transformam motivações e ressignificam cenas que já eram potentes. Contudo, impossível mesmo é pensar em qualquer um destes aspectos sem reparar nos colossais castelos feudais em chamas, no caos coreografado ou em como a produção se assegura de representar o conjunto da obra com notável cuidado.
Este é um caso em que comentários genéricos não subestimam as qualidade das conquistas individuais, sendo aplicáveis sem que nada se perca na abrangência da descrição. Se num caso normal dizer que os visuais são espetaculares podem deixar o espectador perdido em relação ao que o adjetivo se refere — fotografia, efeitos especiais, direção, design de produção etc — em “Ran” ele diz respeito à todas os aspectos envolvidos na construção das imagens. Visuais incríveis começam já na escolha dos locais de filmagem, os quais usam a duração de quase 3 horas para mostrar diversas faces do Japão feudal. Dentre elas, dois grandes castelos históricos — Himeji e Kumamoto — e um construído exclusivamente para a produção são alguns dos pilares visuais de toda a obra. A arquitetura tipicamente japonesa simboliza as posições de poder numa época em que hierarquia era algo especialmente importante. Então, sem dó, a trama desconstrói isso, ateia fogo à estes locais buscando tornar a ruína do tradicionalismo como algo ainda mais marcante. Subitamente, o filme troca estes ambientes pelo espaço que sempre existiu entre os centros de poder. As planícies vastas, populadas apenas pelo vento e pela poeira, tornam-se uma constante entre intervalos de refúgio nas ruínas de um castelo antigo. O que antes significou segurança, então passa a ser o consolo barato de quem não tem mais os luxos de antes.
Em 1953, Yasujirô Ozu lançava “Era uma Vez em Tóquio“, um de seus maiores e mais conhecidos trabalhos. Seu grande tema, além da proposta de injetar realidade nos dramas cinematográficos, foi de mostrar a possível decepção dos pais para com os filhos; como um elo baseado em sentimentos verdadeiros se deturpa de uma geração para outra. Pais conhecem seus filhos novamente, mas não gostam do que vêem por perceber que seus ensinamentos se perderam com o tempo. Quando se fala nas inspirações de “Ran”, a primeira obra mencionada é “Rei Lear”por conta da maior parte de sua história ser usada como base aqui; são contos sobre um poderoso lorde que divide suas terras entre herdeiros sem considerar a possibilidade de algo dar errado. Eventualmente, a decepção do patriarca ao ver a verdadeira índole de seus descendentes traz sua ruína. Os traços shakesperianos estão ali, mas acredito que a obra de Ozu não deve ser esquecida. A surpresa dos pais ao encarar um tipo de maldade, egoísmo e corrupção, nos próprios filhos é um elo muito forte para ser esquecido.
No entanto, essa lembrança surgiu em minha mente mais por conta de “Ran” transcender este conceito. “Era uma Vez em Tóquio” trata-se de uma exposição relativamente controversa de frustrações inesperadas, visto que nenhum pai espera que o filho o decepcione ou admite tal decepção quando ela surge. A história não chega a atribuir culpa aos pais pelos atos dos filhos e os coloca como gente que sofre sem merecer, servindo como uma crítica à geração mais nova. Não há nada do tipo em Hidetora. Seu trajeto é centenas de vezes mais pesado, porém ele tem um passado negro atrás de si para tirar de jogo qualquer alegação de inocência. De certa forma, ele presencia uma repetição de quem ele foi um dia e não enxerga isso. Akira Kurosawa atinge mais fundo ao criticar não só a nova geração como a antiga também. Não há ninguém inocente nesta realidade. Ignorantes, muitos, mas nenhum que não tenha sua parcela de más intenções, cobiça e oportunismo dentro de si.
As escolhas de cenários e locais como símbolos deixam claro que foram feitas com consciência de seu impacto narrativo. Adicionalmente, a direção infere também num aspecto mais agitado da história, o qual conta com elementos de caráter estético a fim de dar a “Ran” o polimento característico de obras primas. Além do fato de um castelo medieval inteiro ter sido construído para a produção, todo o figurino foi feito a mão. E não me refiro apenas a quimonos de tecido, mas a mais de mil uniformes e armaduras feitos ao longo de mais dois anos por alfaiates de todo o país. Um figurante dentro de cada uma dessas armaduras e mais de 200 cavalos resultam na criação de cenas de batalha genuinamente impressionantes. Novamente, se algum grande responsável pelo sucesso for apontado, digo que é a direção precisa de Akira Kurosawa. Figurinos são os complementos da maravilha de ver dezenas de figurantes em armaduras coloridas correndo, morrendo e caindo de seus cavalos armadurados enquanto a câmera se posiciona no ponto em que melhor captura tudo o que acontece. Talvez a estética seja um aspecto pequeno frente a todo o resto, mas não deixa de ser incrível pelo mão de obra envolvida e, acima de tudo, porque um dos grandes motivos do atraso da produção foi falta de financiamento. Acredito que nem mesmo o diretor esperava conseguir dinheiro para a confecção manual de um universo só seu.
Antes de assistir a “Ran”, já admirava Akira Kurosawa como um grande cineasta japonês e reconhecia seu talento com outras obras. “Rashômon” inovou a forma cinematográfica com uma narrativa que colocava em xeque a própria credibilidade de uma narrativa — popularizando o cinema estrangeiro no processo. “Os Sete Samurais” expandiu o conto de samurais defendendo um vilarejo atacado por bandidos em algo gigantesco, um Épico de proporções Hollywoodianas e valores inconfundivelmente orientais. “Ikiru” voltou os olhos para a contemporaneidade e, novamente, ao trabalho de Yasujirô Ozu quando explorou a hipocrisia do ser humano num contexto mais comum. Mesmo com seus sucessos individuais, nenhuma destas obras chegou a me empolgar realmente pelo resto da carreira do diretor. Não é o que posso dizer de “Ran”, um filme que não deixa dúvidas sobre seu sucesso por sair-se muito bem em tudo a que se propõe.